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Esboços para o levantamento da agrodiversidade típica de Santana.
O exemplo do trigo e do milho (conclusão)

Variedades locais no exemplo do trigo e do milho

Miguel Carvalho foto2

Variedade local (ou regional) é uma forma cultivada ou um conjunto de entidades (formas cultivadas) da cultura agrícola praticada por uma comunidade ou região específica (distribuição geográfica restrita), cujo material de propagação (sementes, estacaria, tubérculo) é de origem local, sendo produzido e mantido pelo agricultor ou associação de produtores e/ou atestada por um banco de germoplasma. As variedades locais podem ser registadas no Catálogo Nacional de Variedades Vegetais como variedades de conservação, sendo este registo importante para a proteção do recurso genético e valorização da produção local. A classificação como variedade local exige que esta detenha um conjunto de características nucleares de natureza agronómica ou botânica, boa adaptação às condições locais e uso ou valor agronómico, histórico, etnográfico ou cultural documentados.

Dado que o território de Santana apresenta uma diversidade de condições agroecológicas que definem a agrodiversidade biofísica, nos vários sítios do concelho podem existir diferentes variedades da mesma cultura. Os agricultores distinguem as suas qualidades (sinónimo de variedade) através de nomes vulgares que atribuem às suas formas cultivadas. No entanto, os nomes atribuídos nem sempre significam a existência de diferentes variedades locais. E o mesmo nome vulgar, quando atribuído a várias formas cultivadas, não implica que estas pertençam à mesma variedade local.

O trigo foi introduzido na Madeira pelos primeiros povoadores, sendo utilizadas sobretudo duas espécies, o trigo mole e o trigo duro. Estas espécies têm diferentes valores agronómicos e usos alimentares.

De acordo com Gaspar Frutoso (1522 – 1591), o trigo era cultivado desde 1445, sendo a primeira variedade utilizada o trigo anafil ou português. Apesar da introdução inicial ter ocorrido a partir do continente Português, a agrodiversidade de trigo na Madeira apresenta afinidades com Canárias, bacia Mediterrânica, Açores e Norte da Europa. Estas afinidades resultam do facto de ter ocorrido a introdução de material genético a partir destas regiões geográficas. Um estudo realizado pelo ISOPlexis permitiu identificar a existência de 30 variedades locais de trigo na Madeira (dos Santos e Pinheiro de Carvalho, 2006). Apesar disso, a Região não possui nenhuma variedade local de trigo registada no Catálogo Nacional. As variedades distinguem-se por ter uma dimensão (comprimento do colmo) superior às variedades comerciais e entre si por possuírem diferente potencial produtivo, densidade da semente, elasticidade da farinha, teores de amido ou de glúten, ou resistências à acidez, seca ou metais no solo. Estas variedades dividem-se, quanto à sua aptidão tecnológica, em trigos melhoradores (com excelente aptidão para panificação), trigos de boa ou média qualidade de panificação, e trigos apropriados para o fabrico de pastas ou outros usos culinários. Estas caraterísticas levaram os agricultores a utilizar as variedades locais ou qualidades de trigo de forma seletiva em diferentes tradições ou usos gastronómicos, nomeadamente o empalhamento das casas, “searinhas” das lapinhas natalícias, o pão caseiro da festa ou de trabalho, a sopa de trigo, o gofe, o bolo ázimo e outra doçaria, o cuscuz, as massas frescas caseiras, as malassadas ou o frangolho, entre outros. A recuperação da agrodiversidade etnográfica associada à cultura do trigo, que reúne conhecimentos, práticas culturais, tradições e usos gastronómicos é fundamental para diferenciar e valorizar a produção regional de trigo.

No território de Santana foram recolhidos 29 acessos de trigo identificados por 13 nomes vulgares. Pelo menos 11 variedades locais de trigo foram identificadas no território, incluindo seis variedades locais típicas e exclusivas do concelho, nomeadamente os trigos Arroz, Pardo, Barbela, Cana roxa, Canalha e Doiradinho. Outra variedade local, que não é exclusiva de Santana, o trigo Galhoto, era também muito cultivada pela sua palha alta e resistente, em que a estrutura do colmo a torna menos suscetível ao acamamento. Estas variedades já não se encontram provavelmente em uso no concelho, por falta de agricultores que assegurem o seu cultivo e produção do material de propagação.
O milho é uma cerealífera de introdução tardia na Madeira, mas que adquiriu grande importância na agricultura familiar e tradições gastronómicas madeirenses. A introdução desta espécie terá ocorrido provavelmente antes de 1847, a partir da América do Sul. No entanto, foi apenas após esta data, com a introdução, a partir dos Açores, de variedades aclimatadas às regiões temperadas que o cultivo se difundiu. A introdução ocorreu, segundo Silva e Meneses (1908), no território de Santana. Posteriormente, outras introduções de material genético terão ocorrido provavelmente a partir das possessões africanas, contribuindo para o aparecimento da variedade de milho branco de Santana. Esta variedade encontra-se registada no Catálogo Nacional de Variedades, sendo a sua manutenção assegurada pelo Germobanco.

À semelhança da agricultura de montanha da América Latina, as variedades de milho são cultivadas em consociação. A consociação das três irmãs, tradicional na Madeira, permite aumentar a sustentabilidade de produção e uma alimentação equilibrada. As variedades locais de milho distinguem-se das variedades e dos híbridos comerciais pela maior altura da planta, investindo na produção de biomassa, pelo menor número de espigas por planta, com espigas de oito fileiras de grão, em geral, e pelo grão pesado, com grande densidade, dureza e maior teor de proteína. O potencial produtivo destas variedades é bom, devido à boa adaptação às condições agroecológicas locais, nomeadamente à acidez dos solos.

Estas caraterísticas levaram os agricultores a utilizar as variedades locais em diferentes tradições ou usos gastronómicos. A palha era utilizada como silagem e alimento para os animais ou no artesanato. As espigas e o grão são consumidos em vários pratos tradicionais, nomeadamente o milho ripado, o milho escaldado, a escarpiada, a maçaroca cozida e assada, as papas de milho e o milho frito.

O milho é uma espécie de polinização livre e cruzada, o que torna difícil a manutenção da integridade das variedades locais, em particular quando são cultivadas junto com híbridos e variedades de milho doce de introdução recente. Assim, a recuperação destas variedades e da agrodiversidade etnográfica associada à cultura, que reúne conhecimentos, práticas culturais, tradições e usos gastronómicos, é fundamental para diferenciar e valorizar a produção das variedades regionais de milho. A utilização da variedade de Santana nas papas de milho e milho frito, associado a uma DOP, seria uma ação importante na proteção do recurso genético.

 

De seguida, faremos uma breve caracterização de variedades de trigo e milho típicas do concelho de Santana.

Variedades típicas de Santana

Variedade de Trigo Pardo

Trigo mole, compacto, do tipo creticum, origem geográfica em São Roque do Faial, Santana. A documentação histórica disponível do cultivo desta variedade remonta ao início do século XX, mas, considerando a sua afinidade e a história da cultura do trigo na Madeira, será anterior. A variedade tinha o cultivo confinado a algumas localidades da costa Norte. Planta de estrutura média. Colmo de grossura mediana e oco. Espiga compacta, sem pragana (aristas) e semente de tamanho alongado e corado e peso médio. Este trigo caracteriza-se por um ciclo de produção médio. A variedade possui bom potencial produtivo, valor agronómico e adaptação às condições locais. O trigo pardo aparece associado a tradições gastronómicas, nomeadamente na confeção de sopa de trigo. Outro uso tradicional é a utilização do colmo na cobertura do telhado das casas, nomeadamente nas freguesias de Santana e São Jorge.

Variedade de Trigo Arroz

Trigo mole, do tipo lutescens, origem geográfica em São Roque do Faial, Santana. A documentação histórica disponível do cultivo desta variedade remonta ao século XIX, mas, considerando a sua afinidade e a história da cultura do trigo na Madeira, será anterior. A variedade teria o cultivo confinado ao concelho de Santana. Planta de estrutura alta e porte ereto. Colmo de grossura mediana e oco. Espiga mútica, medianamente alongada, glabra. Semente alongada e corada de vermelho e peso médio. Este trigo caracteriza-se por um ciclo de produção ligeiramente precoce. A variedade possui bom potencial produtivo, valor agronómico e adaptação às condições locais. O trigo arroz aparece associado à confeção de pão e do frangolho. Outro uso tradicional seria a utilização do colmo na cobertura do telhado das casas, nomeadamente nas freguesias de Santana e São Jorge.

Variedade de Trigo Cana Roxa

Trigo mole, do tipo milturum, origem geográfica na Achada do Gramacho, Santana. A documentação histórica disponível sobre o cultivo desta variedade é obscura, mas será das variedades mais antigas de Santana. A variedade teria o cultivo confinado ao concelho de Santana. Planta de estrutura muito alta e porte ereto. Colmo de grossura mediana e oco. Espiga mútica, branca, comprida, fusiforme. Semente ovoide e corada de vermelho e peso grande. Este trigo caracteriza-se por um ciclo de produção precoce médio. A variedade possui muito bom potencial produtivo, valor agronómico e adaptação às condições locais. O trigo arroz aparece associado à confeção de pão, sopa de trigo e ao uso tradicional do colmo na cobertura do telhado das casas, nomeadamente nas freguesias de Santana e São Jorge.

Variedade de Milho de Santana

A origem geográfica provável desta variedade é o Faial, Santana. A documentação histórica do cultivo desta variedade remonta ao século XIX. A variedade é cultivada na costa norte da Madeira, com incidência nos concelhos de Santana, São Vicente, Porto Moniz e Machico. Este milho caracteriza-se por ter um ciclo de produção curto a médio e boa adaptação às condições agroecológicas locais. A variedade possui bom potencial produtivo, em grão e biomassa. As espigas são delgadas e compridas, com oito fileiras de grão. Grão de coloração branca, grande e peso médio. O grão possui boa aptidão para a produção de farinha, valor económico e agronómico razoável, sendo consumido em fresco. Esta variedade aparece associada a tradições gastronómicas da cozinha tradicional Madeirense, nomeadamente as papas de milho, cozido (com couve, favas, banha de porco, torresmos e peixe frito) ou milho frito, a escarpiada, milho pilado ou pisado cozido. Tradições culturais associadas à variedade incluem a desfolhada, esbangar do milho e a secagem em ramalhetes (norte da ilha da Madeira). Esta variedade de conservação está registada no Catálogo Nacional de Variedades, sendo o recurso genético e a semente base de manutenção mantidos ISOPlexis.

Agradecimentos

O autor agradece aos agricultores que cederam informação e partilharam o material de propagação das suas variedades e programas de financiamento regional, nomeadamente ao PRODERAM (submedida 10.2) e Programa Operacional Madeira 14-20 (CASBio), cujos financiamentos permitiram dar continuidade ao trabalho do Banco de Germoplasma ISOPlexis.

Bibliografia

Doolittle, W.E. (1984) - Agricultural change as an incremental process. Annals of the Association of American Geographers. 74: 124-137.

dos Santos, T.M.M., Pinheiro de Carvalho, M.Â.A. (2006). Trigos da Macaronésia. Diversidade dos Trigos Regionais do Arquipélago da Madeira. Germobanco. Funchal. ISBN: 972-98945-23. 122 pp.

DREM (2013). Indicadores de actividade económica. Estatísticas da Agricultura e Pescas da Região Autónoma da Madeira. Funchal, DREM.

Frutuoso, G. (1966). Saudades da Terra, 1873. Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 6 vol., 920 p.

Pereira, E.C.N. (1939). Ilhas de Zargo. Câmara Municipal do Funchal, Funchal, 4ª Ed., 3 vol., 766 p.

Pio, M.F. (1974). O Concelho de Santana. Esboço Histórico. Funchal. 184 pp.

Pinheiro de Carvalho, M.A.A., Ragonezi, C., Macedo, F.L., Antunes, G., Freitas, G., Humberto Nóbrega, H. (2019). Contributo para o conhecimento da agrodiversidade no concelho de Santa Cruz, Madeira. Agrárias Revista de Ciências. 16658: 1-60 (no prelo).

Silva, F.A. e de Meneses, C.A. (1908). Elucidário Madeirense. Câmara Funchal, Municipal do Funchal. 3º vol., 1340 p.

Se desejar ler a primeira parte deste artigo clique aqui.

 

Miguel. A. A. Pinheiro de Carvalho (texto e foto)
Universidade da Madeira

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