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Sobre um berço e a aventura das plantas

foto PS Terei lido algures, há um tempo que não consigo situar e perdoe-me também quem o escreveu não me lembrar do seu nome, que “sonhar é soltar o cavalo-alado que nos pasta ao alto e, agarrados o que se conseguir à indomável alva crina sua, voar para a viagem que nos queira inventar”. Ou talvez tenha sonhado que o li…

Na modorra prazenteira do cesto da gávea, o marinheiro de vigia teve um sobressalto quando, de súbito, como que saídas de um alçapão que se abrira de repente no céu, meia dúzia de aves de espécie que nunca vira irromperam por ali, volteando-lhe repetidamente o cocuruto e o mastro sobranceiro. Os bichos executavam as suas piruetas aéreas acompanhadas de uma ladainha que não lhe era de todo estranha. Não ia perder tempo com essa reminiscência que sentia ser doce, antes compreender aquela visita inesperada. Os pássaros quereriam anunciar qualquer coisa, uma mensagem enrodilhada numa espécie de eco, uma ressonância arrastada de um lugar que reconhecia sólido. Imaginou o rasto daquele som, constatando então, poucas milhas à frente, que algo começava a erguer-se para fora do plano das águas, abrindo um rasgão na linha do horizonte, durante tantos dias que já perdera a conta, imutavelmente esticada. Afastou dos olhos as farripas de espuma que subiam das ondas mais rijas que a proa afilada da nau ia cortando e arreganhou as pálpebras até à medida que melhor focava aquela mancha ainda distante.

A embarcação ganhou maior velocidade, o pano das velas reteso ao limite da resistência das fibras, não porque o vento tivesse adquirido um nó mais que fosse, sem dúvida movida por uma força maior, o entusiasmo da aventura.

Combinação perfeita com a rara acuidade visual que fizera daquele mareante o eleito para, mais próximo das estrelas, antecipar o que à frente poderia surgir, além das borrascas e outros tormentos do mar, monstros ou prazeres sublimes ainda irrevelados, do borrão castanho-esverdeado que emergia imponente ao longe, aos poucos lhe foi adivinhando, da geometria que conhecia, o que escondia.

Com o avanço veloz do barco e do olhar, as aves sobrevoantes a indicarem o trilho, aquela antes impressão no meio do mar foi-se esbatendo rapidamente e revelando os contornos verdadeiros, divisando então o que lhe pareceu ser uma alcova com a forma de meia casca de noz, encimada por um véu triangular de fino tule.

 

Em estado de grande excitação com a descoberta, e como era norma em tais circunstâncias lançar o aviso a toda a tripulação, a voz ia gritar-lhe “Berço à vista. Berço à vista.”, no entanto, ou não servisse para isso o medo, abreviou para que não se soltasse da garganta. Os companheiros julgá-lo-iam vítima de inusitada insolação e não fariam cerimónia em juntá-lo aos outros enlouquecidos no porão mais escuso da nau. Sem conter a efervescência do momento, mas com a secreta certeza de que se tratava de um berço a ondular no oceano, enfunou a caixa torácica e vociferou “Terra à vista. Terra à vista”.

Quanto às inúmeras plantas frutícolas e hortícolas que a Madeira desde há seis séculos vem dando lar, o nosso marinheiro imaginário tinha toda a razão, a ilha é, de facto, um berço gigante embalado pelo Atlântico. A terra complacente, o estrado do leito, o clima generoso, o véu diáfano protetor.

Independentemente dos ciclos de dominância de um dado cultivo no devir da sua história agrícola, para todas as sementes que a ela aportaram vindas com as novas rotas marítimas de todos os lugares do mundo, a ilha desde logo se assumiu como uma mãe diligente, com um amor incondicional por todos os seus filhos, transfigurando-se num verdadeiro e imenso berço-casa. A cama, a terra fértil. As cantigas de embalar, as brisas que sobem do mar ou que se desenrolam das montanhas. O alimento, as águas boas vindas do Norte. O conforto, o grande amor dos agricultores.

Sobre o papel da Madeira como berço para as plantas que hoje conhecemos, segue uma composição de excertos de textos (das publicações “Dados para a História da Alimentação na Madeira” in revista “Folclore” de 1998 e “Madeira. Da Terra às Tradições Gastronómicas” (2006) in CEHA-Biblioteca Digital), da autoria do saudoso historiador madeirense Professor Alberto Vieira (1956-2019).

“Foi o arquipélago madeirense o início da presença portuguesa no Atlântico, e o primeiro e mais proveitoso resultado desta aventura.

A expansão atlântica revelou ao europeu um novo mundo, onde a flora e a fauna dominaram a admiração dos protagonistas. A descoberta da nova realidade fez-se não só pelo valor alimentar e económico, mas também científico.

O processo de povoamento implicava obrigatoriamente um processo de migração de plantas, animais e técnicas de recoleção, cultivo e transformação destes.

O retorno foi igualmente rico e paulatinamente revolucionou o quotidiano europeu.

Dos quatro cantos do mundo o contributo para a valorização do património natural foi evidente.

A Madeira foi o viveiro de aclimatação nos dois sentidos.

No século XV promoveu a expansão das culturas europeias no mundo atlântico. E de novo a partir do século XVI a descoberta de novos produtos e frutos com valor alimentar levou a que servisse de entreposto de expansão ao velho continente.

Tudo isto acontece porque a ilha continua a ser uma área charneira entre os dois mundos e dispunha de uma variedade de microclimas propícios à fixação de novas plantas e sementes.

A aventura marítima dos homens foi acompanhada de perto pela das plantas”.

O Festival Regional de Folclore – 24 Horas a Bailar deste ano, apresenta a narrativa de alguns dos filhos-culturas agrícolas mais proeminentes deste berço extraordinário para as plantas que é a ilha da Madeira.

(publicado inicialmente na Revista Bailar, n.º 4)

António Paulo Santos
Diretor Regional de Agricultura

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