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Alimentação - perspetiva para além do óbvio

alimentacao DICA 1 Todos os dias comemos e o dia em que, por algum motivo, não o fazemos de forma habitual o organismo ressente-se. É uma das necessidades básicas e, como tal, é suporte da nossa sobrevivência. Atualmente, comer de forma a suprir os compromissos nutricionais/energéticos do organismo e mais tantos outros e alguns que achamos por bem, como são exemplo a saúde e o prazer, é um desafio para a maior parte de nós.

Nos primórdios da nossa existência, satisfazer esta necessidade era o aspeto central do quotidiano. A busca de comida exigia esforço titânico sem sucesso garantido. A escassez de alimentos impunha jejuns prolongados. A fome poupou os que geneticamente eram mais aptos e eficientes na utilização da energia.

Hoje, em particular neste lado do mundo, vivemos num ambiente de relativa abundância alimentar, um cenário de certa forma antagónico ao que os nossos antepassados remotos experienciaram. Come-se mal e demais. O EXCESSO ALIMENTAR escreve-se com letras gordas, o mesmo adjetivo que classifica as suas vítimas. A obesidade, doença que gera doença e rouba vidas, não para de aumentar. É uma epidemia favorecida pelo sedentarismo, pela abundância e pelo terreno fértil da genética naturalmente selecionada.

Em pouco mais de meio século, os estilos de vida, nos quais se incluem e destacam os hábitos alimentares, modificaram-se mais do que em toda a nossa história:

• A sazonalidade deixou de ser condicionante do que se come. Come-se de tudo todo o ano, porque, entre outros fatores envolvidos, as novas técnicas e modos de produção agrícolas permitem produzir em contínuo e em maior quantidade. Os métodos de conservação aperfeiçoados permitem aumentar o tempo de vida útil dos alimentos. A globalização abriu portas à importação de alimentos e é possível comer numa mesma refeição alimentos dos quatro cantos do mundo;

• A alimentação habitual afastou-se, para o bem e para o mal, da natureza, no sentido em que muitos dos alimentos que estão presentes nas nossas refeições do dia-a-dia deixaram de ser alimentos em natureza, para serem produtos transformados e processados, resultantes de combinações engenhosas de alimentos e outras substâncias adicionadas com vários propósitos, como são exemplos o aumento da durabilidade, palatabilidade, e clara sedução dos destinatários;

• O ambiente e locais de consumo/refeições: as refeições em casa e em família deixaram de ser a regra para ser excepção. Hoje come-se sozinho, com amigos ou colegas em locais diversos como cantinas, restaurantes, refeitórios ou até dentro do carro ou banco de jardim. Quando calha, come-se “uma refeição completa”, outras vezes “come-se uma sopa” ou “qualquer coisa”, conforme o bolso, local e/ou tempo permite;

• O local de aquisição de alimentos também se alterou, do autoprodução/consumo, da aquisição direta, do mercado e pequenas mercearias e frutarias para as grandes superfícies, onde compramos sempre de tudo porque o há sempre. Fazer compras nem sempre é coisa simples e óbvia. Sabe-se mais ou menos o que se precisa. Mas, muitas vezes, o que se precisa é apenas uma amostra do que efetivamente trazemos para casa. Porque somos surpreendidos e seduzidos. Os mais avisados lêem atentamente nos rótulos a lista de ingredientes, obrigatória, e a composição nutricional, geralmente por 100 gramas/ml de produto, os rótulos e prazo de validade, para saber algo sobre o que leva para casa. Fogem do nefasto trio rotulado de “inimigos da boa saúde” - açúcar e seus afins, sal e gorduras trans. Outros, porém, seja pela falta de tempo ou de conhecimento, ou seja pelo que for, limitam-se a colocar no carrinho;

• Os menos esclarecidos, os indecisos, os manipulados por campanhas de “terrorismo alimentar”, muitas das quais sustentadas por interesses - uns óbvios e outros mais sutis, excluem e/ou exageram em alimentos e tornam o ato simples de comer em algo que comanda as suas vidas, pervertendo o que é entendido por alimentação saudável. Levam ao extremo o receio de comer algo que afete a sua saúde. Parênteses aqui feito para frisar que uma relação saudável com a comida é questão sine quo non para que a alimentação seja saudável. A preocupação levada ao extremo de obsessão configura doença, uma doença moderna – a ortorexia.

 

alimentacao DICA 2 • Comer “mais de lá do que daqui” é também gerar desperdício e produzir lixo. São as quebras, os prazos ultrapassados, as não conformidades, etc., que mandam para o lixo toneladas de alimentos que nos envergonha perante as vítimas da fome. Lixo que, para além de alimentos, recebe papel, madeiras, latas, plásticos, vidros e uma infinidade de “sobras”. Este comer “mais de lá do que daqui” deixa um rasto que enche caixotes do lixo, lixeiras, rios e ribeiras, jardins, terrenos baldios, praias e oceanos. Contaminam o ambiente e colocam em risco ecossistemas terrestres e marinhos. Levanta questões a nível da sustentabilidade dos ecossistemas e dos recursos.

• As novas formas de produzir, transformar e processar alimentos levantam questões relativamente à qualidade e segurança alimentar. Na produção, a utilização intensiva e por vezes abusiva de fertilizantes e pesticidas para incremento de produção, proteção de culturas e combate de pragas e doenças tem levantado sérias preocupações relativamente a possíveis efeitos deletérios a nível de saúde dos consumidores e impacto ambiental. Alguma ciência associa-os a risco de doenças metabólicas e certos tipos de cancro;

• Muita da ciência/evidência científica relativa a modos de produção/segurança alimentar é controversa. Algumas linhas de investigação são desenhadas para corroborar os resultados pretendidos e defenderem os interesses económicos dos respetivos patrocinadores. Outras carecem de rigor e clarificação metodológica. Outras, contrapondo-se às primeiras, regem-se por evidentes traços fundamentalistas;

• As modas, os mitos e outros interesses. Surgem a toda a hora, “estudos” a gosto de uns e de outros e a provar isto e aquilo. Difundem-se à velocidade da luz nas redes sociais, diabolizando ou “santificando” alimentos, garantindo cura para “maleitas” ou propondo formas aberrantes de comer. Surgem os influencers nas redes, montam negócios de esperança onde promovem produtos e vendem … apesar de pouco saberem do que estão a fazer.

A alimentação é, e continuará a ser, um terreno fértil, uma fonte inesgotável de assunto e de discussão. Sabemos que é dos fatores que mais condiciona a saúde. Mas carece de todos os intervenientes a maior seriedade/racionalidade. A alimentação sempre estará intrinsecamente ligada à natureza. Os modos de produção e as nossas escolhas alimentares devem reger-se e honrar compromissos que garantam a biodiversidade e a sustentabilidade dos recursos naturais. É necessário que a ciência e a tecnologia disponibilizem conhecimentos e meios que permitam produzir mais alimentos, desejavelmente saudáveis, para todos num futuro próximo com muitas mais bocas para alimentar. O ritmo e intensidade das agressões à natureza são aspetos sérios, que, ao longo das últimas décadas, uns mais outros menos, chamam à atenção de todos. São demasiados altos os custos do impacto ambiental – pegada ecológica dos alimentos. Por norma, este custo não está contemplado no preço de aquisição/venda dos produtos. É uma segunda fatura cujos custos são agressões à generosa e poderosa natureza. Há muito que dá sinais de descontentamento, mais evidentes através das alterações climáticas. Não são uma fatalidade do nosso destino, mas sim algo que está nas nossas mão evitar… sendo apenas meros racionais. As escolhas alimentares racionais integram todas estas considerações, e outras ainda, e são oportunidades para manifestar a cidadania e o respeito pelas futuras gerações. Discussões sobre a composição nutricional de alimentos produzidos deste ou daquele modo parecem francamente acessórias. Até porque a sábia mãe natureza mostra numa mesma árvore, na mesma horta, no mesmo cacho de bananas que é mestre em utilizar o “+” e o “–“ e muito raramente “=”.

O pensamento de Emílio Peres em 1979, “A alimentação faz-nos pequenos ou grandes, imbecis ou inteligentes, frágeis ou fortes, apáticos ou intervenientes, insociáveis ou capazes de saudável convivência; mata-nos cedo, ainda em embrião no ventre materno, ou tarde, no ocaso de uma vida plena”, bem se pode aplicar à terra/natureza, pela razão que ela retribuir-nos-á sempre no mesmo sentido e proporção das acções que lhe dirigirmos. Terra “saudável” dá “alimentos saudáveis”.

Vanda Cristóvão
Nutricionista do Serviço de Saúde da RAM, E.P.E.
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