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"À maneira do meu pai"

a maneira do meu pai 1 Lembro-me bem de, num domingo antes da Páscoa, o meu pai resgatar-nos, a mim e aos meus irmãos, para irmos à apanha da nêspera. As manhãs domingueiras antes do almoço eram por vezes preenchidas pela ida ao terreno, onde cresciam livres de problemas as anoneiras, os limoeiros, as nespereiras e outros seres cheios de vida.

Antes de partirmos, o pequeno-almoço de pão de farinha de sêmola com manteiga e leite aguardava-nos sobre a mesa. Era impossível resistir em mergulhar a fatia de pão na chávena até ficar meia-vazia e depois sorvê-la sem pingar na toalha.

A subida para o terreno obrigava a passar pelo poço, coberto de um manto de água verde onde nadavam canas esquecidas por alguém que também tentou em vão apanhar as tímidas rãs que mergulhavam para os recônditos das águas profundas. Contava o meu pai que aprendeu a dar as primeiras braçadas entre aquelas muralhas de pedra. A passagem pelo poço dava início ao caminho de terra batida que silenciava a sola das botas de atanado até ao terreno mais para cima. Para a subida, o porte atlético das pernas contava mais do que as botas de atanado. Longe eram os tempos em que o exercício informal da “apanhada” e dos jogos de faz de conta eram suficientes para as provas de esforço que a natureza desafiava.

Aos pés da encosta sobranceira ao caminho, a água que fugia da barriga rochosa ficava estagnada num pequeno reservatório, onde milhares de larvas de insetos se regozijavam com a chegada da primavera. O cheiro fétido da água na rocha escavada era um sinal que estávamos a meio caminho. Sem necessidade, por agora, de arrefecer a temperatura corporal com água, não havia descanso ou desvio e mantínhamos a passada.

A partir deste ponto a sombra da encosta prolongava-se até à copa das nespereiras que cobriam um chão barulhento de folhagem seca e terra árida.

 

O meu pai era o primeiro a subir depois de um breve resumo sobre os cuidados a ter com as pontas das ramagens onde as nêsperas mais doces, aquecidas pelo sol duradouro, podiam enganar os mais incautos trepadores.

A cesta de vimes ao braço esquerdo e a bota de sola gasta no pé direito esgueiravam-se entre a forquilha dos ramos principais da nespereira que fazia de porta de entrada. As janelas que a folhagem da nespereira abria à medida que puxávamos as nêsperas deixavam passar a brisa fresca e a paisagem quente das casas que cercavam o Funchal. A altura ao chão era controlada com a força dos braços e pernas em ângulos de esquadria que faziam as camisas se soltarem das calças e os joelhos tangentes aos ramos equilibrarem a força que os dedos faziam para arrancar a nêspera da mãe natureza.

As primeiras nêsperas eram apanhadas com desdenho pelo sabor e cuidadosamente aconchegadas na cesta, até me aperceber que o meu pai, na nespereira do lado, desgostava da mesma maneira que também colhia.

A expressão de satisfação, sem qualquer retração da fácies, descrevia mais do que simplesmente o sabor da nêspera. Era mais do que isso, parecia uma mistura entre o prazer e a experiência acumulada de gerações. O gosto por um alimento faz-se pelo sabor, mas acima de tudo pela experiência vivida. O aroma, a textura aveludada, a adstringência e o adocicado somavam-se à sensação de felicidade de estar ali, naquele momento, sem que naquela idade soubesse que essa consciência se repercutiria numa cascata de emoções capazes de construir o gosto. Cada nêspera rica em água e de sabor adocicado pelos açúcares da natureza compunha as necessidades e enriquecia a saúde de vitaminas e minerais.

À maneira do meu pai, a aprendizagem do gosto, fazia-se pela experiência vivida, sem preocupações, mesmo que no final daquela manhã a cesta voltasse para casa vazia. E assim foi, com os dois ou três pares de nêsperas que, no final, juntei à cesta cheia do meu pai, fiquei a gostar deste fruto no pequeno-almoço, almoço ou jantar. Na verdade, para todos os outros alimentos que ali se produziam, o meu pai tornou-se uma referência nos meus hábitos alimentares.


Ricardo Oliveira – Nutricionista 0478N
SESARAM, EPE RAM

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