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vegetais5Eram imagens a preto e branco, percorridas mais ou menos constantemente por uns filamentos intrusos nas mesmas cores ora horizontais, ora verticais, em movimentos vermiformes.

Traços da passagem do tempo, tinha a certeza. Mas por baixo daquela chuva suja, percebia uma espécie de palanque onde iam desfilando silhuetas estranhas, de natureza indefinida. E um homem rubicundo, de farto bigode que arqueava nos extremos, a cartola uns números acima quase cobrindo os olhos, ia anunciando em voz vigorosa e sedutora: "senhoras e senhores, nunca visto em parte nenhuma do Mundo, venham assistir ao nosso espetáculo, e vejam a centímetros dos vossos olhos extasiados e incrédulos: a "lady barbada", "o menino com cara de leão", "Chang e Eng os gémeos siameses", "o homem elástico", "a mulher de quatro pernas", "o homem lagosta" e......". Soletrava pomposamente mais um séquito de epítetos de pobres desgraçados, com deformidades indizíveis, ali pela sobrevivência e contra o completo esquecimento ou reclusão, "artistas" de um autêntico circo de "horrores".

vegetais4Talvez tivesse vindo ao sonho uma vaga réplica do "Maior Espetáculo da Terra" do Barnum & Bailey Circus, célebre nos EUA pelos anos de 1887 e seguintes. Mas agora, o mestre de cerimónias , depois de aclarar com um catarro a voz tonitruante, prosseguia o seu anúncio de vedetas extravagantes: "....e minhas senhoras e meus senhores, meninas e meninos, mais poderão observar em rigoroso exclusivo o "limão de três gibas", a "abóbora cabeça-de-bode", a "alface pele de lagartixa", o "nabo pencudo", a "cenoura língua de cobra", e.....".

Não terá sido certamente este, o sonho da então Comissária da agricultura e desenvolvimento rural, a senhora Mariann Fischer Boel quando, em 2008, fez com que a União Europeia deportasse para as catacumbas da ex-burocracia mais de dois terços das 36 normas de qualidade comercial aplicáveis a igual número de espécies ou grupos de frutos e legumes. Aquelas normas, num apertado casting de candidatos à perfeição, classificavam-nos pelo tamanho, pela forma, pelo aspeto exterior, avaliando-os segundo determinadas escalas de medida, de atributos "visuais" e outras convenções. Só conformes com elas, logo "normais", os vegetais podiam ser comercializados, e assim em condições de serem "aceites" pelos mercados. Aos produtos totalmente "fora" das regras, os que por misterioso desígnio das terras, capricho dos polinizadores, ou vontade da meteorologia, fossem demasiado grandes ou pequenos, ou apresentassem um aspeto deveras esquisito, só restava algum proveito para a casa dos agricultores, a alimentação animal e, no pior dos casos, o lixo inclemente.

vegetais6Mulher com sentido de humor, Boel chegou a afirmar que aquela decisão da União Europeia marcava "o início de uma nova era para os pepinos curvos e as cenouras nodosas". Já num tom mais sério a dinamarquesa referia que não havia qualquer motivo "para regular este tipo de questões a nível comunitário, sendo de longe preferível que os operadores do mercado adoptem as decisões a que houver lugar. Na actual conjuntura de preços elevados dos produtos alimentares e de dificuldades económicas generalizadas, os consumidores devem poder escolher entre a mais vasta gama de produtos possível. Não tem qualquer sentido eliminar produtos de perfeita qualidade, apenas porque têm uma forma "errada"". A antiga Comissária europeia mais argumentava que além da consequente redução da burocracia (mais de cem páginas de regulamentos!), a medida impulsionaria o consumo dos hortofrutícolas, através da permissão da entrada nos mercados de mais de 20% de produtos até então rejeitados para consumo em fresco por incumprimento das exigências normativas (mas com todos os outros critérios de qualidade alimentar que não os visuais), como por aquele efeito poderiam ser vendidos a preços até cerca de 40% mais baixos que os dos praticados para os produtos ditos "regulares".

vegetais3Com esta decisão, que não deixou de ser polémica e muito contestada, e só aprovada por maioria qualificada, "libertaram-se" então do espartilho de uma certa "beleza normal": damascos, alcachofras, espargos, beringelas, abacates, feijões, couves-de-bruxelas, cenouras, couves-flores, cerejas, aboborinhas (courgettes), pepinos, cogumelos de cultura, alhos, avelãs com casca, couves-repolhos, alhos franceses, melões, cebolas, ervilhas, ameixas, aipo de folhas, espinafres, nozes comuns com casca, melões e chicórias whitloof.

Dos circos de aberrações humanas, ou de "freaks", como o de Phineas Barnum (que imaginámos para o princípio deste artigo), apenas possíveis no contexto muito particular dos tempos em causa, sobretudo no novo mundo, gerador de um público ignorante, mórbido, e por vezes cruel com os quais viviam em simbiose, apenas nos princípios do século XX é que os seus infelizes "artistas" se foram desobrigando, principalmente quando a medicina começou a demonstrar que os corpos explorados, por mais inverosímeis que fossem, não passavam do resultado de mutações genéticas e doenças raras, estando por trás daquela aparência seres humanos que mereceriam todo o respeito e cuidados. Também nos frutos e legumes "freaks", por baixo da sua casca, no conteúdo das suas folhas, por dentro das suas inflorescências, estava todo o sabor, aroma e valor nutricional dos produtos iguais ditos "normais".

Desde 1972 que a União Europeia vinha "normalizando" grande parte da sua produção vegetal, e se a partir de 1 de julho de 2009 quebrou as grilhetas aos "enjeitados" de muitas espécies de frutas e de hortícolas, é certo que manteve (e mantém) 10 normas específicas relativas aos citrinos, tomate, uva de mesa, maçã, pera, alface, quivi, morango, pêssego e nectarina, os quais representam no seu conjunto 75%, em valor, das trocas comerciais da UE nesta categoria de produtos, embora introduzindo a possibilidade dos Estados-membros poderem autorizar os estabelecimentos comerciais a vender produtos que não respeitem aquelas regras, desde que sejam rotulados de forma adequada.

vegetais2E é agora, três anos depois, que se volta a ter notícia dos frutos e legumes antes sem direito a "vida" no comércio e, neste caso, logo na esfera dos grandes supermercados. De facto, na Alemanha, a cadeia Edeka iniciou um projeto para a venda destas produções, naturalmente a preços mais baixos, sob uma campanha de comunicação engraçadíssima, com o mote de "ninguém é perfeito". Na Suíça, a Coop lançou mesmo uma gama de vegetais disformes com o nome "Unique", vendidos 60% mais baratos que os restantes.

Igualmente a alemã Rewe, como a mais aristocrata Sainsbury's, no Reino Unido, vêm disponibilizando algum espaço das suas prateleiras hortofrutícolas a estes produtos antes rejeitados liminarmente pelo comércio. Um responsável da Rewe afirma mesmo que "esta não é uma decisão movida por critérios económicos. É uma medida concreta contra a cultura do desperdício".

Portugal também captou rapidamente esta nova tendência, tendo recentemente sido criada a Cooperativa Fruta Feia. Os seus promotores desmistificam a "normalização" das frutas e legumes, reforçando que "nada tem a ver com as questões de segurança e da qualidade alimentar".

vegetais1E é no desperdício que mais claramente se poderá encontrar a justificação para esta nova atitude sobre os produtos vegetais. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), estima que anualmente os países industrializados inutilizem cerca de 1,3 milhões de toneladas de produtos agrícolas, o que bastaria para alimentar diariamente 925 milhões de pessoas que passam fome a nível mundial. Em Portugal, segundo o Projeto de Estudo e Reflexão sobre Desperdício Alimentar, serão desperdiçados por ano um milhão de toneladas de produtos alimentares, ou seja, cerca de 17% de toda a produção nacional.

O nosso já referido Phineas Taylor Barnum, que além de curador de um triste "monstruário", acumulava a "virtude" de farsante (entre outros devaneios, chegou a exibir uma pretensa sereia, e uma mulher com quase 200 anos), teria afirmado, com provável sobranceria, que nasceria "um otário a cada minuto". Claro, encontrava aquela convicção em muito do seu néscio público. Mas se há constatação sobre os consumidores atuais é que estes não serão nada "distraídos", antes pelo contrário, cada vez mais bem informados, esclarecidos e exigentes. E se até agora não puderam adquirir vegetais com menos "bom ar", mas proporcionadores de tanta satisfação como os que o deterão, é porque os pontos de venda habituais não os disponibilizaram.

Paulo Santos
Direção Regional de Agricultura e Desenvolvimento Rural

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