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paobatata1Era assim. Despertar com um aroma inconfundível, não com a voz já desesperada de uma mãe zelosa ou um insistente grasnar irrompendo de um mecanismo algures no quarto.

Um aroma com sabor, temperatura e som. O sabor algo difícil de explicar mas que se sabia (e antecipava o sabor) dos melhores do mundo, a temperatura tépida e boa, e quanto ao som um suave crepitar, como se trouxesse recordações de lenha a consumir-se vagarosamente. A hora mais ou menos certa, sempre cediça, o primeiro acontecimento de todas as manhãs, fizesse chuva ou sol, a estação que fosse. Chegava ainda morno e estaladiço, ou pelo padeiro ou pela avó madrugadora que lhe fazia bem (e a nós nem se fala!!!) ir até à mercearia. A receita, claro, do "campo"!

Hoje, esse tempo não passará de uma saudade. Pelo menos no que diga respeito àquela presença benquista na ordem do quotidiano e indispensável, para muita gente, ao seu bom curso. Um guardião das melhores tradições, não diria só que o pão se tenha "afastado" das pessoas, e "aburguesado" mesmo em estatuto e que, neste aspeto, até algum adquirido a pose de peça de "butique". Mas o pior, exaltaria com mais intensa paixão aquele convicto defensor das raízes populares, não terá sido esse "distanciamento" ou a obtenção de certos "tiques", mas, sobretudo nos núcleos urbanos, a par da exponenciação das variedades e tipos de pães, a perda de identidade dos, permitam-nos aqui designar, "pães antigos" de uma dada região ou, nos casos mais reprováveis, o abuso do uso do seu bom nome em produtos com pouco a ver com os genuínos.

trigo6-1Na verdade, o pão na Madeira será tão remoto (século XV) como nela a presença humana e, com esta, o cultivo do trigo, mais concretamente do "anafil", também conhecido por "trigo português" ou "trigo pelado", «o primeiro que mandou deitar à terra o Infante D. Henrique» (1). De facto, não muito depois da descoberta, em carta dirigida a João Gonçalves Zarco, o Infante de Sagres, lembrava a importância do pão, e mandava um tal de João Afonso "corrigir" uma mó, e que se fizesse um moinho de água (2).

Se este cereal constituiu também, naqueles tempos mais recuados, moeda para pagamento de «tributos civis, proventos eclesiásticos, forais e mais obrigações de carácter geral ou particular» (1), e ainda que integrante de outros pratos tradicionais, não deixou de desempenhar o seu papel fundamental de ingrediente base para o fabrico de pão, um alimento essencial das populações. O historiador João José Abreu de Sousa, corrobora a importância deste produto constatando que, até ao século XVII, o alimento básico era «o "pão" ou cereais consumidos, preferentemente, sob a forma de pão, no sentido literal, todo o resto, frutas, legumes e carne ou peixe eram suplementos, muitas vezes, próprios de épocas festivas» (3). Mas dadas as especiais circunstâncias da propriedade e exploração da terra naqueles séculos, como bem aclara outro importante historiador madeirense, Alberto Vieira (4), os meios para a cozedura do pão eram dominantemente públicos e só «nalgumas casas solarengas do meio rural apresentavam mais do que um forno em que se cozia o pão para a família, colonos e criados». Esta condicionante, supomos nós, terá provavelmente contribuído, em paralelo, já que "tecnologicamente" menos exigente, para a disseminação do "bolo do caco", resultado da influência mourisca na Madeira, mais vincadamente no século XVI. Aquele pão redondo e achatado, que se julga de reminiscência hebraica, preparava-se com a «massa como para o fabrico do pão, trabalhando-a um pouco mais até ficar bastante mole. Passa pela levedura, mas menos lêveda que a do pão, e coze-se num caco ou frigideira de barro, abafado de cinza ou em lume vivo (...) Depois de cozido, achega-se ao calor de cinzas e brasas para lhe tostarem a borda. Também se coze em cima de uma pedra de tufo aquecida no lar» (1).

bolocacoDepois de uma grande pujança, em que por cada medida semeada chegariam a colher-se 50, devido à diminuição da produtividade e ao advento de outras culturas de maior interesse económico, como as da cana-de-açúcar e da vinha, a produção de trigo foi baixando, e de exportadora, a Madeira passou, cerca do último quartel do século XV, a importadora deste cereal, e duas centúrias depois, as suas colheitas apenas permitiam cobrir as necessidades de metade do ano (5).

O trigo, como matéria-prima do pão, cedo passou a ser um bem valioso em função da maior ou menor expressividade da cultura nos diferentes locais da Madeira. Entende-se assim porque é que, escasso o grão, em várias zonas rurais só se amassasse o pão de quinze em quinze dias sendo «feito para ter uma longa duração, guardando-se na caixa existente, habitualmente, na cozinha", e que "era de cada vez que se amassava que os camponeses iam ao moinho. Quando o moinho estava a funcionar, a população era avisada pela chamada dum búzio. O mesmo processo de apelo era feito para a rega. Uma vez amassado, o pão era cozido num forno existente ao pé do lar» (3).

bolocaco1Mas o engenho dos madeirenses, logo permitiu contornar as dificuldades da disponibilidade de trigo, quer em quantidade, quer em qualidade. Com a chegada da batata-doce à Ilha da Madeira, por volta do século XVII, ou já a partir da segunda metade do século XVI de acordo com outros autores, e a sua excelente adaptação a quase todo o território, foram-na introduzindo à composição do pão. Depois de cozida e esmagada, a batata-doce era adicionada à massa, já "presa" com a farinha de trigo, o fermento e a água temperada com sal. O pão ficava mais gostoso, macio e mole, e mantinha «sempre agradáveis as suas qualidades naturais» (1).

A este fator indutor de distinção, haverá que somar um outro que muito contribuiu para conferir um caráter único e inimitável a este "pão de trigo da terra" ou "pão de casa", acrescentando-lhe outros atributos ou "afinando-lhe" as características organoléticas já de si vincadas, e fazendo-o especialmente «trigueiro, muito saboroso e salutar» (1), e, também por isso, incomparável aos pães de outras origens. Aqui referimo-nos aos fornos utilizados para a cozedura do pão. Estes, geralmente, eram de forma semicircular de abóbada troncada, e construídos com a denominada "cantaria de forno", a qual corresponde aos tufos ou consolidações de lamas vulcânicas, que originam a cantaria mole de cor vermelho-acastanhado, específica da Ilha da Madeira. As características singulares destes materiais geológicos e da estrutura dos fornos tradicionais definiam uma "cozedura" sui generis, no que esta engloba de um determinado desenlace de fenómenos físico-químicos, e, consequentemente, uma qualidade "diferente" aos pães. As pedras de maior reputação provinham de pedreiras de cantaria mole do Caniçal, do Cabo Girão ou do Ribeiro Frio, sendo que na primeira localidade ainda é possível mandar fabricá-los.

fornoSe ousássemos fazer uma similitude com a tricotomia humana, poder-se-ia dizer que além de um "corpo", a composição especial da massa, e uma "alma", o forno que lhe sublinharia atributos ocultos, faltaria considerar um "espírito", isto é, o "saber- próprio" de cada produtor, o qual ditaria uma interação única e distinta entre os dois primeiros componentes.

Este "saber-próprio" ou "saber-fazer" inerente a cada produtor, mais ou menos diretamente ligado à tradição das famílias ou de certos espaços geográficos, que se traduzia na feitura de uma massa panar com uma certa composição (proporção entre os ingredientes base, quantidade e tipo de fermento utilizado), e processos particulares de a amassar, levedar e tender como, finalmente, de a cozer (com as características do forno a exercerem a sua influência), determinaria existissem diversos "pães de casa", se bem que originados de uma base comum, com a aparência da "côdea" e do "miolo", as formas e as dimensões diferentes.

roscaQuanto ao formato resultava «de preferência fechado nas costas Oeste e de Norte; arredondam-no em Ponta do Sol e alongam-no em outras povoações rurais» (1), ou até em rosca como é o caso da designada "Rosquilha de São Vicente".

De todo este rico passado, perpassou para o presente o essencial dos "modos de fazer", como se de uma herança se tratasse transmitida de cada geração para a seguinte. Hoje, sobretudo no meio rural, ainda há muitas famílias que fazem semanalmente o seu "pão de casa", no forno a lenha, e além dos outros ingredientes típicos, ou com a preciosa farinha de trigo indígena extreme, ou em mistura com farinhas industriais deste cereal ou em último caso, mas sem nunca dispensar a batata-doce, só com aquelas últimas. Alguns agregados domésticos também fazem daquelas produções atividade económica, como algumas padarias do meio rural preservam o receituário tradicional, conquanto muitas das fases dos processos já não sejam, naturalmente, manuais. Ainda que partindo de uma base semelhante, mas com uma maior ou menor variabilidade conferida pelos "segredos" dos produtores envolvidos, os "pães de casa" que vêm assumindo maior visibilidade, transportam orgulhosamente os nomes da sua geografia de produção, como são exemplo, entre outros, o "Pão de Santana" e o "Pão de Gaula".

Entre os "pães madeirenses" com história, também será justo mencionar o "pão de castanha", que adquire significado nos locais em que a cultura do castanheiro detém maior expressividade, sendo que a massa cozida do seu fruto substitui a de batata-doce dentro os ingredientes base.

Se é facilmente entendível que, nos tempos de agora, a produção de trigos madeirenses jamais possa suprir as necessidades do mercado, designadamente das indústrias das massas e da panificação, bom seria que os agricultores mantivessem, e até recrudescessem, o interesse pela cultura, o que só dependerá do sucesso a jusante dos mais genuínos "pães madeirenses", e quanto a este aspeto da estrita exigência e vontade de todos nós, os consumidores. Eduardo C.N. Pereira, de cuja obra tutelar bastante nos socorremos para este artigo, considerou o trigo como uma cultura «inveterada no nosso povo». Longe de ser necessário, pela sua extrema falta, recordar revoltas e outros levantamentos populares, que os houve, façamos dos seus produtos mais nobres, os pães da Madeira, no mínimo, uma reivindicação.

Aproveitamos este ensejo para anunciar que a Secretaria Regional do Ambiente e dos Recursos Naturais, está a estudar o estabelecimento de um regime específico com vista à proteção e valorização dos "pães tradicionais madeirenses", o qual em devido tempo será divulgado.

E é com todo estes nossos "pães", que não queremos só sonhar ou usufruir quando se vá ao seu encontro, mas materializá-los o maior número possível de manhãs que repitam aquele chamamento da infância.
«Metido o pão no forno, o padeiro, antes de o fechar, traça com a pá diante da boca daquele uma cruz, pronunciando estas palavras: "Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Assim cresças no forno como cresceste no mundo.» (1)

Referências:
(1)- "Ilhas de Zargo"- Eduardo C. N. Pereira – Volumes I e II, 4ª Edição - 1989.
(2)- "Breve Notícia sobre a Ilha da Madeira"- Paulo Perestrello da Câmara – 1841.
(3)- "A Mesa e a Cozinha na História Madeirense"- Alberto Vieira - 2004.
(4)- "Camponeses do Oeste da Madeira" - João José Abreu de Sousa - "Islenha" n.º 17 – 1995.
(5)- "A História do Trigo no Arquipélago da Madeira" - Rui Vieira - 2006.

Paulo Santos
Direção Regional de Agricultura e Desenvolvimento Rural