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Festa da Flor – se a natureza escrevesse poesia!

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Não se sabe em concreto de quem partiu a ideia. Contudo, não custará admitir ter sido magicada por alguém certamente inteligente e criativo, dando razão ao que sobre o tema escreveu o poeta e dramaturgo francês Rémy de Gourmont: «as ideias simples só estão ao alcance de espíritos complexos». Poderia ser o membro mais fantasioso de um grupo de conspiradores umbrosos que se encafuavam no último piso do torreão de um prédio do século XIX, no gaveto da Rua dos Ferreiros com a Rua dos Netos. Podia, pelos homens de chapéu enterrado até meia cana do nariz que se dirigiam em passo apressado para aquele número 164, onde ficavam noite dentro. Tal conjetura só passaria por uma mente perversa ou, no mínimo, imaginosa. Nada disso! Muito provavelmente apenas uma pessoa fora do comum, por profissão ligada ao comércio funchalense, legatário dos que, corria o ano da graça de 1898, fundaram o Ateneu Comercial do Funchal, uma associação «de instrução profissional, física e recreativa, representação e protecção mútuas, criada pelos empregados do comércio». O facto de ser um comerciante aparentemente normal, não obstava a que fosse simultaneamente um visionário.

Mas afinal, de que ideia se tratou? Sabe-se que, pela sua natureza semelhante à das bolas de sabão, as ideias têm de ser, de preferência as boas, de algum modo agarradas. Felizmente, esta foi lavrada para ata, mais precisamente a n.º 239, de certeza a caneta de aparo. Então a Madeira um autêntica caravela florida encalhada no Atlântico onde, da terra fértil acariciada por um clima dócil, qualquer espécie vegetal desponta, não deveria celebrar devidamente aquele júbilo de cores, formas e aromas? Os madeirenses que, salvo raras exceções, adoram verdadeiramente as flores e as colecionam pelos logradouros e quintais ou as domam pelos belos jardins citadinos e das quintas que tanto espantam os turistas, não mereciam festejar aquele feliz amor?

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Estava-se a 11 de abril de 1933 e aquela ideia, a partir de fundeada em papel já força e objetivo, consistia no Ateneu vir a realizar uma grande exposição de flores durante o mês de agosto seguinte. Porém, como referem Carla Iolanda Costa e João Adriano Ribeiro no seu livro «Ateneu Comercial do Funchal», tal evento não chegou a ser realizado porque «nos bastidores da política faziam-se várias movimentações». Estes autores explicam que «a ideia genial de fazer uma exposição de flores portas adentro foi mais tarde ultrapassada por uma manifestação de rua. Procurava-se através das flores dar cor e vivacidade, fazer o culto do Estado, o qual por sua vez procurava todos os meios para se afirmar. No ano de 1935, o Estado Novo assumia um papel decisivo da condução dos portugueses. Era a vez do golpe de Estado de 28 de Maio de 1926 ter a sua propaganda. Era necessário festejar o 28 de Maio e impressionar não só os madeirenses como também os visitantes. Assim, no referido ano, depois de ter feito um levantamento do número das vendedeiras de flores, a Câmara do Funchal publicou uma postura nos periódicos madeirenses, a 26 de Maio de 1935, na qual estipulava o uso do trajo obrigatório para o exercício daquele ofício. Passados dois dias, nas comemorações do 28 de Maio, as floristas usaram pela primeira vez o vestuário garrido, o qual tornar-se-ia usual na Madeira e, posteriormente, seria imitado por grupos folclóricos, como, por exemplo, o da Camacha. Será de ter em conta que apenas dois dias separam a publicação da postura e a estreia do novo trajo das floristas, os quais não eram suficientes para costurar o vestuário para tantas mulheres. Instituiu-se, assim, um trajo padrão para aquelas que quisessem imitar as camponesas madeirenses, perdendo-se assim toda a iniciativa que houve de copiar a antiga maneira de trajar dos povos madeirenses e que fez durante anos o fulgor nalguns espetáculos do Ateneu do Funchal».

 
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A ideia da organização de uma grande exposição de flores na instituição que foi buscar à Grécia Antiga o nome e o espírito do templo dedicado ao culto da deusa Atena, divindade da Sabedoria e das Artes, ficou assim adiada sine die. E a Segunda Guerra Mundial, com as suas feridas a consumirem muitos dos anos seguintes para sarar, também não ajudou a que refermentasse. Não obstante, e socorrendo-nos de outro aforismo sobre a matéria, neste caso do geólogo irlandês Robert Mallet, que diz que «as boas ideias não têm idade, apenas têm futuro», possivelmente por insistência e obstinação do mesmo homem clarividente que a tivera 21 anos atrás, finalmente em 1954 o Ateneu Comercial do Funchal concretiza a Festa da Rosa a qual, no ano imediato, foi renomeada para Festa da Flor. Desde essa data e durante quase meio século por ali continuou a morar, com o beneplácito e encorajamento de um Mercúrio éreo sempre hospitaleiro a franquear as escadarias de acesso às salas onde nasciam por uma segunda vez flores e plantas magníficas. Os cultivadores que todos os anos ansiavam por participar no acontecimento, quais progenitores diligentes, não deixavam por muito tempo as criações sob a alçada da vista, e menos o faziam quando, após a passagem do júri constituído por reputadas figuras da floricultura e da sociedade madeirenses, uma delas tinha sido premiada. Quem os observasse, percebia uma vaidade falsamente contida, a qual acabava por revelar-se sobre a prata, que rebrilhava, dos troféus oferecidos por comerciantes sócios da coletividade.

Por entre bailes, jogos florais, conferências sobre literatura, realização de cursos, e tantas e tantas outras iniciativas de índole cultural, social e desportiva, a Festa da Flor todos os anos chamava ao Ateneu Comercial do Funchal milhares de visitantes, madeirenses e estrangeiros, muitos deles adquirindo a partir da sua experiência da exposição uma paixão nova ou redobrada por flores. A par do culto maior, os dinâmicos atenistas não deixaram de dedicar outros eventos às flores, promovendo por exemplo a realização da Mostra do Sapatinho e a Mostra do Antúrio.

Outro homem sagaz e de grandes ideias, o insigne e inesquecível Eng. Rui Vieira, corria o ano de 1969, no discurso, ao que dizem brilhante, que foi convidado a fazer nas comemorações do 75.º aniversário do Ateneu Comercial do Funchal, professou então: «Complete-se a Festa da Flor com um cortejo e tornar-se-ia um atractivo turístico de categoria mundial». Antevisão certeira teve o ilustre engenheiro agrónomo, como bem atesta o sucesso do evento e a importância que hoje assume para o setor turístico da Madeira. No entanto foi necessário ultrapassar uma década, e nela a Madeira conquistar a sua autonomia política e administrativa, para que a Festa da Flor extravasasse para as ruas do Funchal, e obtivesse uma dinâmica acrescida.

Também por motivos que a história ainda não escalpelizou suficientemente, o Ateneu Comercial do Funchal entrou em severa crise e decadência, obrigando a que os organismos públicos que superentendiam as áreas do turismo e da agricultura, assumissem a continuidade da Festa da Flor, nesta sua vertente de passerelle do que lhe dá o mote e a razão, noutro local, desde 2003, bem no coração da cidade do Funchal, no Largo da Restauração. E é lá que, mais uma vez, de 16 a 22 de abril próximos, decorrerá a exposição do melhor da produção florícola regional, este ano sob o enquadramento temático «Floresta Encantada». Sem revelar o que certamente maravilhará quem visite o evento, confirmar-se-á que se a natureza escrevesse poesia fá-lo-ia com flores.

E a respeito de poesia, neste caso da humana, convocar-se-ia o nosso bardo imortal, o Herberto Hélder, e um trecho do seu «Ou o Poema Contínuo» (Assírio & Alvim, 2001):

«Sou uma devastação inteligente.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas
em trompete. Sou
alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.»

 

Paulo Santos
Direção Regional de Agricultura e Desenvolvimento Rural