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Devaneio... com vaquinhas pelo meio!

De há três meses para cá, diga-se que de livre e plena vontade, estive metida num remoinho de emoções. Fenómeno "mentosférico" de fulgor variável, mesmo nos momentos menos agitados com vapores de adrenalina capazes de manterem a flutuar os cinquenta e cinco quilos aqui da Quitéria Maria. Apenas a uma altitude mais baixa naqueles períodos de aparente acalmia. Até no sono tinha a sensação do corpo não tocar o lençol e mantinham-se-me a cabeça um pião em movimento perpétuo e o coração uma concertina incansável, somente ambos numa intensidade mais moderada. Tinham sido as sucessivas festas da Festa e, sem intervalo assinalável, o bulício carnavalesco. Agora, já estão em contagem decrescente, ou "countdown" como, em conversa a propósito, me fez nota o meu bisneto Frederico, ou não estivesse ele de férias do trabalho no centro aeroespacial de Kourou (toma! alemão duma figa, consegui fixar os nomes!) na Guiana Francesa, os preparativos para a quadra pascal. Oh, e se eu tanto gosto da Páscoa! Que espanto, diria a minha filha Dalila, a mãe até agora celebra festejos inventados como o Halloween. Mas para levar à época celebratória que se adivinha a idade numerosa de que a maior parte das vezes me esqueço, reconheço, como se cansa de repetir o meu médico, o bonacheirão do doutor Flausino, dever sossegar a molécula. Custará ao piãozinho e ao acordeão que me habitam um amansamento forçado. O problema de me ter lembrado do que estava quase a assentar arraiais seriam as papilas gustativas: dessa mera antevisão imediatamente entradas num princípio de inquietação. Ia ter de fazer um grande sacrifício, para não lhe chamar desmesurada penitência.

paul do marAmanhecera um dia eufórico, o céu sem qualquer perturbação, uma sujidade de nuvem que fosse, num azul água Paul do Mar reverberante. Tinha enchido uma caneca de café cheiroso e fui que nem uma seta para o quintal sentar-me na poltrona de vime na beira da varanda de painéis de madeira em xadrez. Quando me levantei ainda estava breu e nada fazia adivinhar se pusesse uma manhã com aquela luz, cor e vibração. Acordara-me o despertador que todos trazemos de nascença inculcado no cérebro, objeto que funciona autónoma e intempestivamente, principalmente a partir de um certo grau de lotação da biblioteca da vida. O galo da minha vizinha Hermengarda deixara de cumprir a função de toque de alvorada por duas razões: mandara colocar vidros duplos nas janelas do meu quarto e o pobre do bípede apanhara uma infeção, não percebi onde, que há mais de quinze dias o remetera a um desesperado mutismo.

Em dias assim, desculpassem outros fatores de tumulto do espírito que pudessem manifestar-se em simultâneo, não perdoava aproveitar os minutos que me apetecesse aquele posto de observação e acolá deixar-me ser invadida por aquela beleza esplendente. Privilégio daqueles nem um pedregulho das matérias mais grosseiras desprezaria. O jardim ficava embebido naquela luminosidade que dava vontade de tocar e todas as plantas, sem exceção, inclusive as mais enfezaditas, adquiriam um brilho suplementar. As flores, especialmente, pareciam ter maior volume, as pétalas mostravam configurações geralmente ocultas e as cores exibiam outras camadas submersas. Neste deleite, foi então que verifiquei que o canteiro por baixo da araucária que ocupa o centro do meu éden estava repleto de ervas infestantes. Condescendi que o Sr. Fulgêncio, o jardineiro, ainda não tivesse tido oportunidade de proceder à devida eliminação de indesejáveis vegetais. Os afazeres da Festa tinham-no desviado para outras prioridades, uma das quais, precisamente, travestir a Araucaria columnaris em árvore de Natal. Uma tarefa muito complicada, a exigir andaimes e escadotes vários, como longas horas de dedicação. Além disso, durante a execução do projeto eu ficara com o coração nas mãos, o homem com quase oitenta anos a amacacar pela ramaria fora para estender gambiarras e pendurar enfeites de dimensão apreciável.

vacas2Quem estava deliciado no meio daquela erva invasora com mais de um palmo de altura era o Alcobias III. A ronronar, rebolava para cá e para lá sobre o tapete verde, sabendo-lhe bem a macieza da cama por baixo e o calor, ainda pouco forte, do sol por cima. Depois desapareceu por uns minutos entre a cortina de grama e voltou a ressurgir à frente de um tufo mais imponente, com gotículas da noite a pingar das pontas. Deu uma sacudidela com a patita direita nos fios esverdeados e começou a mordiscá-los. Ao dar mais atenção àquele corpo branco malhado de pintas castanhas, agora debruçado sobre um prado de ocasião, veio-me à lembrança uma vaquita. Neste caso desenhada num pasto a sério, extenso, a erva mais alta e apropriada, mas em igual desempenho alimentar. Talvez nos Açores, certamente em São Miguel, de preferência pelas proximidades da Lagoa das Sete Cidades.

 

Ao que o gato me fez levar! Um salto até à sala de estar ao lado para procurar o meu Moleskine A5 onde vou acumulando recortes de notícias, reportagens e artigos que, de algum modo, considerei interessantes da imprensa de referência que não prescindo. Compro os principais semanários, jornais e revistas em língua portuguesa, os quais, à segunda-feira, o Sr. Manuel vai diligentemente recolher ao quiosque junto do Apolo que me faz o favor de os guardar. A papelada é muita e impossível de digerir enquanto não chega a próxima revoada. Dela recorto o que li e gostei ou separo o que não tive tempo para apreciar com a devida atenção. O livrinho preto é o repositório daquele manancial, mas apenas lhe colo o que acho valer a pena para releitura futura, acrescentando notas minhas e frases de livros de que muito gostei.

kundera milan
milan kundera livro

A busca foi rápida, dado o icónico caderno que adquiriu fama por ter sido utilizado por artistas como Vincent Van Gogh, Pablo Picasso, Ernest Hemingway e Bruce Chatwin, repousar sobre a prateleira do meio da estante dos livros, onde aliás, por cima do mesmo, estacionava a caixa dos meus óculos, dada por perdida desde a véspera. Não é que a Quitéria Maria alguma vez tivesse tido a pretensão de se armar em intelectual mas a parafernália de suportes de escrita que a empresa italiana oferecia eram-me irresistíveis.

Sabia que tinha inscrito numa daquelas apetecíveis páginas brancas uma frase, claro, acerca de vacas. Tirara-a da «Insustentável Leveza do Ser» que revira há umas semanas atrás, dum escritor que aprecio muito, o checo Milan Kundera. Regressei ao assento inicial, aconcheguei a almofada dupla do cadeirão, e folheei o Moleskine até a encontrar: «A humanidade é parasita da vaca, assim como a ténia é parasita do homem: agarrou-se à sua teta como uma sanguessuga. O homem é o parasita da vaca. Essa é, sem dúvida, a definição que um não-homem poderia dar ao homem na sua zoologia. A verdadeira bondade do homem só se pode manifestar com toda a pureza, com toda a liberdade, em relação àqueles que não representam nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, num nível tão profundo que escapa ao nosso olhar), são as relações com aqueles que estão à nossa mercê: os animais. É aí que se produz o maior desvio do homem, derrota fundamental da qual decorrem todas as outras».

espetadaIa refletir sobre o texto, o Alcobias III, esse, continuava a mastigar pedaços de erva da mesma touça de há pouco, quando irrompeu pelas minhas costas uma sombra gigantesca, acompanhada imediatamente pela Hermengarda. Tinha as chaves de casa e entrara pela porta principal. Recomposta do susto, expliquei-lhe que ia filosofar sobre vacas. Ela, sem perceber bem o que lhe dissera, abriu-me os imensos olhos azuis em sinal de interrogação. Nem mais, aquele olhar sempre meigo e bondoso, diria constituir um autêntico exemplo de "olhar bovino". Vacas? Hum! A minha querida vizinha salivou e confessou sem qualquer constrangimento ter muitas saudades de comer uma espetadinha suculenta, acompanhada de batatinhas fritas, das verdadeiras, feitas na hora, e duma fresca salada de alface e tomates.

O desejo não iria ficar por ali. Havia que lhe atenuar a chama senão o meu dia ia ser um tormento. Sem gota de filosofia, mas com muita carne. Pedi-lhe o telemóvel. Liguei para o táxi do Sr. Manuel e combinei que nos viesse buscar pelas 7 da tarde, para nos conduzir àquele restaurante de excelentes espetadas que ele bem conhecia no Estreito de Câmara de Lobos.


Quitéria Maria (com Paulo Santos)