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Contudo... eis o Entrudo!!!

serpentinasNão há muito tempo, uma amiga que conservo por Lisboa, quando estávamos a repor a narrativa boa (sim, que qualquer desgraça nossa ou do mundo está em princípio proibida), dos dias desde a última conversa, saiu-se com mais ou menos a seguinte peroração: «Quitérrria querida... Graças a Deus, vocês os madeirenses estão sempre em festa». Falávamos ao telefone e fora eu que daquela vez ligara, pois não obtinha notícias da rapariga há largos meses.

m veneziana1A Clementine era uma jóia de pessoa, e não merecia nem uma gota do que a velhice lhe fizera passaram uns cinco anos, presa irremediavelmente a um catre, viúva do último marido possível, num 4.º andar sem elevador, na Rua dos Anjos. Talvez por isso habitasse ali. Perversidade do destino. Sem filhos porque para grande mágoa não os pudera ter, nem família próxima, a existir perdida pelo norte de França, valiam-lhe para as precisões a segurança social e, para as aflições e miminhos, um casal jovem que, felizmente, viera morar para o andar do lado. Certamente corajosos, quando me lembro de ter que subir aquela escadaria infinita, sobre a qual nem uma bailarina em pontas passaria despercebida. Quando finalmente alcançava o patamar da casa, a alma pela boca fora, o cérebro mantinha uns minutos aquele ranger assombrado dos degraus. E tinha sido o ballet que a trouxera a Portugal, um salto de uns meses para dar umas aulas de substituição no Conservatório, que a professora efetiva estatelara-se e ficara, mostrou-me uma fotografia, uma múmia enrolada a gesso. Não esperava era cair em paixão por um marialva da Mouraria, coisa de fósforo, uma seguinte por um fadista castiço que lhe ficou a dever o dinheiro da edição do único disco e muitas outras fugazes com indivíduos em crescendo de excentricidade. De todos, marcara-a um poeta que a tomara por musa, e lhe escrevia diariamente longas declarações de amor. A certa altura, os versos que lhe entregara eram integralmente iguais aos da véspera e a repetição manteve-se por semanas. Quando decidida a confrontá-lo com o facto no café ponto de encontro do costume, disseram-lhe ter sido levado em colete-de-forças pois há horas que chamava aos berros por uma tal de "Clementina". Finalmente, decidiu assentar, em cinco casamentos sucessivos com uma duração média de 10 anos mas, definitivamente, sempre pela cidade das sete colinas.

Brincalhonas uma com a outra, no meio da descrição de mais um romance falhado e outro começado, disse-lhe que o que a fizera encalhar por aquelas bandas não foram a benignidade do clima e o tempero da luz com que habitualmente se justificava, sim a beleza dos herdeiros de Viriato. Ela riu-se e acrescentou ao garbo uma distinta lábia.

Bem, lá estou eu a tergiversar do tema que me trouxe a esta crónica. A Clementine concluíra que os madeirenses estavam permanentemente em folguedo, quando acabara de lhe fazer o resumo dos principais acontecimentos do verão anterior que incluíram, aqui da parte da Quitéria Maria e companhia, uma dúzia de incursões a outros tantos arraiais e idas às Festas da Cereja e da Banana, ao Festival de Folclore de Santana e, claro, à Feira do Gado do Porto Moniz. Não imaginava ela que, depois de a contragosto ter arrumado a parafernália da Festa, e ainda ontem o senhor Fulgêncio, o jardineiro que vem cá a casa uma vez por mês, retirara a gambiarra gigante da araucária do quintal, a minha árvore de Natal dos últimos anos, já marchavam os preparativos para o Carnaval.

 

sonhos1A cozinha estava um pandemónio. A Eufrásia, que tinha de se colocar sobre um banquinho para abarcar toda a área do fogão, fritava uma dose de sonhos. Não ficava descansada que ela se ocupasse daquela operação, pois dava um saltinho a cada vez que o óleo estalava nas voltas com a massa, e receava, a um salpico maior, pudesse tombar do apoio precário. Pelo balcão lateral, reinava a anarquia. Sobre um tapete de farinha, espalhavam-se tachos, instrumentos culinários vários, embalagens dos ingredientes vazias e por encetar e, nos poucos espaços livres, cascas de ovos empilhadas umas nas outras, totens de uma civilização galinácea que por acolá tivesse apascentado. À frente da máquina de lavar roupa, sentada numa cadeira que trouxera da sala, a Hermengarda batia vigorosamente a mistura dos ovos com a farinha e, reconheça-se, não haveria para a função melhor "batedora", para não dizer "agressora". Fazia-o com tanto empenho e óbvio esforço que as bochechas ficavam duas lâmpadas vermelhas e a testa um tecido enrugado marejado de brilhantes.

malassadas1.1Quanto às malassadas, essas seriam feitas mais próximo do entrudo, que gostava de as fazer para comer pouco depois, ou perdiam a macieza que lhes dava a graça. Mel de Cana havia em quantidade suficiente, que quando o comprava era para toda a doçaria natalícia, mais prevendo a que a quadra carnavalesca impõe. Ia no táxi do Sr. Manuel aos Engenhos do Ribeiro Seco e trazia dois garrafões de 5 litros da delícia. Este ano só fiquei com muita pena de não poder ter sido atendida pelo sorriso do Sr. Vasco.

A sala da costura estava igualmente em estado de sítio, pedaços de tecidos coloridos e de esponjas um pouco por todo o lado. Para o meu disfarce de cana-de-açúcar só faltava acabar o tubo superior de folhas. Quanto à vestimenta da Hermengarda havia que aprimorar uns pormenores, dar um pouco mais de volume, ou não pareceria uma malassada convincente. Tinha de estar tudo pronto para o cortejo trapalhão da terça-feira e a nossa trupe incluía o Sr. Manuel e a Eufrásia, vestidos de boião de mel de cana, o taxista, e de bolo de mel de cana, a minha empregada. O próprio táxi seria uma forma típica do doce.

Na sala, sob a orientação e mãos da minha bisneta Filipa, com muito jeito para decorações, tinham sido colocados enfeites alusivos à época foliona, desde serpentinas em torno dos candeeiros e dos varões dos cortinados, tinas com confetes, a umas quantas máscaras venezianas e outras de palhaços. O Alcobias III, naturalmente quis ajudar, apenas tendo conseguido fazer cair sobre a cabecita uma bola de serpentinas colocada sobre um pedestal. Aquela cabeleira temporária seria provavelmente a que usaria o gato do Marquês de Pombal.

Enquanto a Eufrásia e a Hermengarda permaneciam no frenesim culinário mantive-me pela sala. Não faltava muito para as cinco da tarde, e sabia que o meu filho Vicente não tardaria a chegar para fazer a sua partida carnavalesca do costume: aparecer de rompante em traje de dominó. A coisa já estava previamente combinada com ele. Quando batesse à porta, pediria à Hermengarda para ir abri-la, pois estaria ocupada a pendurar uma viseira na estante dos livros. Era certo e sabido que haveria um grito quando visse uma figura coberta da cabeça aos pés por um manto negro, a gesticular-lhe com uns grunhidos. Não quero é que lhe dê um fanico como no ano passado, que quem se assustou mais foi aqui a Quitéria Maria.

 

Quitéria Maria
(com Paulo Santos)