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Um "nó" no coração ou até logo, Natal!

ary dos santosQuanto adoro despertá-los do sono de quase um ano nas respetivas caixinhas dormitório, quanto me custa, sempre um "nó" no coração, voltar a metê-los naquelas quatro paredes de papelão ou metal. Chamo-lhes "tesouros", o sem-número de objetos, não importa alguns de pechisbeque, que contribuem para que o Natal que faço seja o que é, o dezembro inteirinho e grande parte do janeiro a darem-lhe as formas, as tonalidades e a respiração e, no restante imenso calendário, obrigados ao feitiço de Cinderela. Amaro e Antão que me desculpem, estendo o espírito natalício um pouco mais além até outro São, o Sebastião. Mesmo assim, que me recorde, umas duas ou três vezes aquela hibernação forçada foi inquietada, tantas as incursões bem-sucedidas do Alcobias III pela porta empenada do armário que os acomoda no sótão. Numa dessas ocasiões de então estroinice, visto muito mais novo que agora, conseguiu enrodilhar-se nuns cordões brilhantes para enfeitar pinheiros, ensacados na prateleira mais alta, de tal maneira que apanhei cá um valente dum susto, quando uma grinalda saltitante correu para os meus braços. Os homónimos predecessores, por mera conveniência da memória numerados por "I" e "II", não experimentaram sequer aquela tentação que, na anterior casa, tudo partia e tornava a relicários de castanho com ferrolho inexpugnável, baús feitos originalmente para conservarem trigo. Após o incidente, tomei o abuso de adaptar o que aquele poeta anafadito, talvez o último trovador do povo, escreveu sobre a quadra, ou seja, que o Natal também «é quando um gato quiser».

Não que entenda bem porquê, uns anos depois do meu querido Alcobias ter asado e, sobretudo, quando fui viver apenas com o seu nome em gato, ganhei uma paixão redobrada pelo Natal e uma inusitada ânsia em partilhar e cultivar as suas tradições com aqueles de quem mais gosto. Claro, dos filhos e das respetivas descendências, como dos parceiros do meu, como agora soará moderno dizer-se, "envelhecimento ativo". Porém, cada Natal que passe, mais difícil é aceitar ter de conceder-lhe um justo intervalo. O momento para o desarmar e encaixotar só começa a ser pensado depois de me apresentarem mais do que uma razão irrebatível para tal empreendimento ter que acontecer. Olhe isto, olhe aquilo: as searinhas cabeleiras de bruxa Mim; as cabrinhas coitadas, uns paus ressequidos a seguir de estraladas as estrelinhas; o algodão dos ribeiros e das cascatas, água suja; as "manhãs de páscoa" as quais, nesta época, bem insisto deviam chamar-se pelo outro cognome, muito mais adequado, o de "estrelas de Natal", uns polvos aflitos a retorcerem-se. Está-se a ver, comentários dos meus bisnetos mais atentos, o Pedro geralmente a acirrar por trás. Da fruta do presépio de escadinhas ninguém poderia fazer reparo pois, ao mínimo sinal de engelhamento ou de excessiva atração a mosquitos ou outras aeronaves circunvagantes, substituía-as amiúde.

bolo de mel

Não fossem vários dos sabores e perfumes da Festa permanecerem por mais uns meses, a mágoa seria garantidamente maior. Ficam, pelo menos, o bolo e as broas de mel de cana, outros doces pequenos, estes mais por apertado controlo e reserva num esconderijo da cozinha, os picles e as cebolinhas de escabeche. Devido à sua natureza duradoura, enrobustecida pela dupla veste de papel de manteiga e filme de alumínio, o bolo de mel de cana mantém, por longo tempo, o seu génio extraordinário incólume. Cozo-o em duas fornadas nada austeras dado que, invariavelmente, constitui o presente especial, digamos com "assinatura", da Quitéria Maria para cada casa da família mais chegada. Para esta repartição, convenhamos que a quantidade da iguaria tem de ser bem substante, capaz de bastar às moradas dos 5 filhos, 8 netos e de meia-dúzia dos 15 bisnetos, os que, mais cresciditos, ou senhores do seu nariz, entretanto foram para ninho próprio. Nesta oferenda também estão incluídos os amigos, cabendo-lhes o seu quinhão, desde o meu paciente médico, o Dr. Flausino, ao solícito taxista, o Sr. Manuel que, a brincar, apelido de "o meu Ambrósio", os Ferrero Rocher que agradeçam a publicidade.

 

cebolinhas de escabecheEnquanto sobrevivessem estas delícias do palato, sentir-me-ia, vá lá, como um daqueles balões de bonecos que, apesar de terem perdido muito gás, persistem em manter-se no ar. O grande problema consistia nas sub-reptícias investidas aos preciosos stocks por parte da Hermengarda. Nas suas visitas diárias, contasse-se cerca de meia hora de cavaqueio ou de simples presença para manifestar começar a ter uma certa roeza. E não seria truque porque, na verdade, ouvia-lhe uns tumultos saídos da considerável geografia abdominal. Como tal acontecia geralmente fora do horário normal das refeições, conseguia comover, facto que me obrigava a improvisar um lanchito. As vítimas, necessariamente, os meus bolos e broas de mel de cana para acompanharem um chazito. Chá verde para ver se lhe refreava o apetite.

manoel oliveiraMas estava decidido dar curso à despedida do Natal, àquela sua componente mais física ou visível. Se pudesse faria birra, ou será que o facto de estar etiquetada como da 4.ª idade não me daria direito a esse dislate? Tá certo que esta categorização etária não corresponde necessariamente a um atestado de senilidade, ou Galileu Galilei não tivesse concluído a sua obra já ia nas 72 primaveras, que Sigmund Freud, escrevesse e teorizasse, até bem pouco antes do seu 83.º aniversário, e que o nosso juvenilíssimo Manoel Oliveira, com uns provectos 106 anos, ainda o ano passado tenha realizado «O Velho do Restelo». Pronto. Queria que o Natal nunca acabasse. Apenas, e só. Todavia, se mantivesse tudo como estava, dar-me-iam por tontinha e, mesmo que o dissessem pelos cantos em surdina, acabaria por perceber adquirir alguma frequência a citação da palavra «Trapiche».

bolas de natalContudo, quando a tarefa está definitivamente marcada, a Eufrásia e a Hermengarda prontas para o exercício, invento sempre terem-me aparecido umas inesperadas frieiras. Encobrirá o delito o frio que infalivelmente faz por esta altura. Ainda assim, escondo aquela mentirinha com umas convenientes luvas de malha. Fico-me por ali a dar orientações, o Alcobias III ao lado com ares de encarregado de obras: as bolas para aquela caixa grande branca; as gambiarras naquela outra redonda; os veleiros e berloques vários dentro das retangulares iguais. O mais trabalhoso é guardar com o devido cuidado a multidão de figurinhas exiladas da lapinha. Vão para bonitas embalagens de marcas de whiskies antigos, uma por uma envolvidas em plástico de bolhinhas. Os meninos Jesus, esses, seguem direitinhos para o posto do costume no meu altar privado.

A contrapartida, o sacrifício de um número mais ou menos apreciável de bolos de mel de cana. A razia dependerá do grau de saciedade da Hermengarda. O que ninguém sabe é que tenho uma lata com uns quantos num sítio secreto do meu quarto. Dá para durar até os próximos. O Natal que não demorará!

 

Quitéria Maria
(com Paulo Santos)

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