1 1 1 1 1

Ai Pão por Deus!

castanhas4Deitara-me mais tarde do que o costume, ia para as duas da manhã. Claro que fica por aqui, esperando que o Doutor Flausino não venha a saber, embora este, porque me tenta medicar nem me lembro há quantos bons anos, já esteja definitivamente convencido de que o meu juízo não prima por uma garantida fiabilidade. Confesso que a minha relação com o dormir alguma vez tenha sido fácil. Rendo-me contrariada quando um sono indomável me agarra ao sofá ou atira para os lençóis. Vou bem com ele quando me voluntario à cama com o argumento de continuar o livro que sempre tenho à cabeceira. A culpa pertencerá a Shakespeare quando escreveu qualquer coisa como «o sono é a antecâmara da morte». Neste concreto, o desnorte deveu-se à Sarah Linden e ao parceiro Stephen Holder, na sua incansável tentativa de descoberta de outro pérfido assassino de raparigas. A terceira temporada de «The Killing» tinha principiado, e o meu bisneto Afonso, aquele que mais entende das "séries que a bi vai gostar de certeza", por qualquer justificável razão, não tivera oportunidade de informar-me estar em gravação automática. Impagável invento! Devorara de uma assentada 3 episódios e, não fosse o relógio de parede que o meu saudoso Alcobias tanto estimara estar mesmo por cima da televisão a recordar-me a inexorabilidade do tempo, ter-me-ia metido em mais cinquenta e tal minutos de subúrbios esconsos repletos de almas à procura de salvação.

castanhas5O Alcobias III, esse, dormitara o tempo que os dois detetives demoraram, entre imensos cigarros, de pista em pista falhada, e apenas dei conta de ter entreaberto um dos olhos quando, num momento, folhas secas no sobrado exterior imitaram um fugidio rastejar. Subi as escadas, o gato atrás a tropeçar nos degraus. Despi o roupão, recostei as minhas às costas da cama, e moldei-me o melhor possível aos lençóis de flanela fresquinhos e cheirosos. Puxei «A Sombra da Sereia» da Camilla Lackberg e, no percurso, tentei evocar o nome da terra onde o homem desaparecera misteriosamente... Fjall... Fjall-ta... Fjallbacka. Ai, o meu exercício de memória da semana! Durante o dia rememorara cinco vezes o raio daquele lugar, algures na Suécia, e não falhara. A cábula na prega da manga do camiseiro somente para confirmar. Agora seria mesmo partida do cansaço. Va de retro o alemão que usurpou a senilidade! O marcador de pena de pavão que herdei da minha mãe levou-me à página onde estava. Deslizei o indicador pela folha à procura do último parágrafo que tinha a certeza ter lido e...

Uma folha de papel alvíssimo colara-se-me ao lado de dentro das pálpebras. Se não fosse o que aquela rigorosa geometria deixava de fora, umas águas descoradas, a visão aérea de uma monótona planície nevada em quietude gelada. Papel pois, um estado de hibernação fugaz. A película de silêncio não tardou a ser quebrada pelo crepitar dum remoinho de pó efervescente a formar-se ao longe. As volutas de partículas, como uma mancha a espalhar-se, sucessivamente mais próximas. Os grãos a crescerem vertiginosamente para silhuetas femininas, e o som a mudar de um tamborilar compassado para um inconfundível trotar animal. Num ápice, uma horda de Amazonas de olhar feroz a passar em cavalgada louca, um punho sobre a adaga às cinturas, o outro por entre a crina das montadas. Após a onda de gritos e relinchos, novamente a folha branca. Poucos segundos. Logo um ponto solitário surgiu do fundo, num avançar pendular. Longe da energia dos corpúsculos da primeira vaga, lá foi vagarosamente aumentando de diâmetro e, a partir de uma certa distância, tornou-se percetível quem ali vinha. Esta súbdita de Pentesileia, além de muito mais roliça que as companheiras, sobrecarregava não um garanhão selvagem, mas um esplendoroso galo gigante. Ainda que arfante, parou-me mesmo à altura do olhar, e esganiçou um vigoroso cacarejo. A Amazona atardada fez-me um sorriso encantador, amaciou a penugem avermelhada do bicho, e seguiu o seu destino de aventura. Pensava eu. O galo fez uma inesperada marcha atrás, o pescoço todo reclinado para a cauda a desaparecer, e voltou a dirigir-me o seu cântico no máximo de decibéis que lhe era possível.

Acordei atarantada sem saber onde estava, o olhar de gozo do galináceo a atrapalhar as roldanas do pensamento. Enquanto a cabeça retomava alguma ordem, percebi-me num quarto familiar, sentada contra o espaldar da cama, um livro de borco sobre o colo. Aos pés sentia uma coisa mole, que trepidava suavemente. Ah, o Alcobias III sobre o cobertor! Espreitei o relógio do corredor, colocado estrategicamente para ser visto dali, e o ponteiro pequeno indicava um espaço vazio entre o 2 e o 3. Faltava muito para o dia e perdera o sono. Hoje não ia estragar valeriana, e restava-me tentar descobrir onde Morfeu se poderia ter escondido. Desliguei a luz do candeeiro e mantive-me quieta de olhos abertos fixando o teto. Imediatamente encheu-me a memória uma Hermengarda de trajes arrojados, uma espécie de biquíni feito em pele de vaca cortada sem grande cuidado, montada sobre a sua querida ave de capoeira... rhh... enviando-me o seu desarmante sorriso. Vendo melhor, reparo agora o que levava à cabeça como elmo: meio ouriço de castanhas de uma árvore que só poderia existir num mundo de colossos. Neste caso, um ao contrário daquele que Stevenson criou para Gulliver, talvez "Hermengardiput", e...

 

castanhas3

Aparecera em velocidade da esquina da casinha branca em baixo, galgou a direito toda a largura do quintal traseiro e, sem perder um grama do ímpeto, guinou subitamente o corpito franzino para a esquerda metendo-se pela vereda acima. Serpenteou pelos esses do caminho que só ela via, uma cabecita à tona de um manto verde que se rasgava à sua passagem e, após uns segundos eclipsada por um afloramento rochoso mais empertigado, depressa ressurgiu no lado de lá do outeiro. Uma ligeira paragem para apanhar o ar e o chão plano, arregaçar novamente com uma só mão o saiote azul claro à altura dos joelhos, e continuou a correr. Os cabelos louros esticados para trás, os pés molas que não tocavam a terra. Aliás, sobre erva fofa qua fazia uma vénia à sua passagem e, no retorno, empurrava ainda mais aquele ir.

eira do serradoEra uma menina. Uma miúda com 7 ou 8 anos não mais. Compreendi então porque não me eram estranhos a casinha branca, o caminho sinuoso sempre a subir, a sombra que metia medo numa das curvas e aquele patamar ervoso. A miúda também. Aqui a Maria Quitéria Maria (pronto, lá denunciei o meu verdadeiro nome de batismo, devaneio que já perdoei ao meu pai). Geralmente aos domingos, o mês de novembro a espreguiçar-se, duas coisas faziam-me voar até àquele lugar, um aroma tão bom e, precisamente, a voz do meu progenitor a berrar de cima: «as castanhas estão quase prontas!». Junto ao homem, para mim tão alto que quando lhe estava às cavalitas imaginava-me pelas alturas da Eira do Serrado, ardia o braseiro feito com caruma de pinheiro donde soltavam-se uns estalidos diferentes dos que partiam do lume. As castanhas, quando emitiam aquele lamento, é que estariam a ficar bem assadas. O meu pai afastava-as para o lado com um pauzinho do monte fumegante, e a tentação era logo pegá-las. Várias escaldadelas dolorosas de principiante, aprendera a deixá-las arrefecer uns minutos. A disputa entre mim e o meu pai pelas castanhas crocantes, que ele deixava ganhar, durava até que mais nenhuma sobrasse. As mãos ficavam todas pretas da fuligem das cascas, e o divertimento seguinte consistia em fazermos pinturas na cara um do outro, como os «índios da América» dizia ele.

cartucho castanhasLera, não sei onde ou escrito por quem, que um cheiro pode ter a força dum burro teimoso e, como tal, tornar-se corpóreo. O das castanhas assadas, mesmo num sonho, tem de facto esse poder. Levantei-me dum salto, nem cinco da manhã eram. O Alcobias III não deu pelo reboliço e permaneceu estirado como um travesseiro peludo. Desci até ao escritório, procurei a caixinha da costura, e peguei em dois pedaços de tecido de chita antiga de que nunca me desfiz. Nas horas seguintes esforcei-me na obra de dois sacos de Pão-por-Deus. Não é para me gabar, mas ficaram bem bonitinhos com as suas flores coloridas sobre um amarelo outonal. Um para mim, o outro para a Hermengarda. Não importava o dia do evento já ter acontecido, as duas íamos celebrar o nosso. Um pouco mais tarde telefonaria ao Sr. Manuel e combinaria o táxi para depois do almoço. Primeira paragem no Mercado dos Lavradores para abastecer os saquinhos com o melhor da época e, numa loja perto, juntar ao pecúlio uns chocolates e guloseimas várias. Segunda etapa na Avenida do Mar, para comer umas supimpas dumas castanhitas assadas, embora tenha muitas saudades do tempo daqueles que as vendiam pequeninhas e estaladiças, vestidos de roupa branca, tabuleiros a tira colo, e pregão audível, acabadas de sair dos cacos espalhados pelas praias da baía do Funchal.

 

Quitéria Maria
(com Paulo Santos)

Comentar

Código de segurança
Atualizar

Este sítio utiliza cookies para facilitar a navegação e obter estatísticas de utilização. Pode consultar a nossa Política de Privacidade aqui.