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Feira do Porto Moniz, onde sempre fui feliz!

dona quit2Acordei mais cedo do que a regra, ainda o estupor do galo da Hermengarda não desbobinara a sua madrugadora trombeteada dissonante.

Aqui para nós, que bem sei que vive comigo uma maldadezita irreprimível, há dias em que dou por mim a praguejar contra o animal e a vilipendiá-lo de "Hermengardo d'um raio".

A má-disposição ficava no quarto, e aquela acontecia sobretudo quando levo o entusiasmo pela leitura até mais tarde e acabo por adormecer com o livro em tenda sobre o peito, alturas em que o sono tem de prolongar-se pela manhã dentro seguinte.

Se a minha estimada vizinha concebesse que eu padeceria de um certo ódio de estimação para com o bípede ficaria, e com toda a razão, ofendida. Ela tem uma verdadeira adoração pelo bicho e já observei que, quando vai ao galinheiro deitar comida e recolher os ovos, conversa mais ou menos longamente com o dito. E o galináceo até parece dar-lhe atenção, o pescoço e a crista descorada levantados para a humana. Como estou afastada, do lado de lá do muro que separa as nossas casas, não consigo entender a mínima palavra. Mas confesso de que gostava.

Nem me lembrei da moinha no "bico de papagaio" do pé esquerdo que me atormentara a noite anterior até adormecer e desci lesta a escadaria até ao hall de entrada, mas não suficientemente rápida que o Alcobias III, que apenas abrira olho com o roçagar das argolas pelo varão do reposteiro, não me ultrapassasse logo a meio do primeiro lanço de degraus.

Não iria ao quintal porque ainda estava escuro, pus a cafeteira na boca maior do fogão e, enquanto esperava o líquido subisse, sentei-me numa banca a tentar perceber o porquê daquela espertina inusitada.

Avizinhava-se julho, o calor apelaria à praia, os bisnetos mais novos começariam as férias escolares e a visitar-me mais vezes, e... pois claro! Fez-se-me súbita luz. Não faltaria muito tempo para acontecer a Feira do Gado, lá no topo da Santa, por seu lado alcandorada sobre a deleitosa baía da Vila do Porto Moniz. Fora então a proximidade da Feira do Gado, o que me dera corda ao despertador da cabeça.

A cafeteira principiou a resfolegar e, quase em uníssono, o galo da Hermengarda esganiçou o seu cântico. Hoje até não desgostei daquele gorjeio esforçado ou, pelo menos, não foi capaz de bulir-me com os nervos. Servi uma caneca até cima com o café cheiroso e avancei para o quintal, o Alcobias III a fazer gincana entre as passadas e as abas do roupão.

Pusera-se logo uma manhã tonificante, encimada por um céu de um azul especialmente bonito.

Um azul como aquele que Robert Bucks, o diretor de fotografia da «Janela Indiscreta» do genial Alfred Hitchcock, conseguiu extrair dos olhos do James Stewart.

Aqui para a Quitéria Maria um dos seus atores de cinema preferidos, só 11 anos mais velho e do qual, quando adolescente, chegou a guardar em muitas fotografias. A maioria de close-ups do seu rosto e sorriso perfeitos, e menos de cenas de filmes em que ia participando, algumas surripiadas do «Século Ilustrado» que o meu pai assinava e guardava desde o primeiro número, mas a grande parte arrancadas da revista «Cinearte» que a minha prima Umbelina, umas duas a três vezes por ano, mandava em caixotes do Rio de Janeiro.

Todos aqueles retratos, fossem os clandestinos sem o progenitor desconfiar, fossem os lícitos retirados à ansiada publicação brasileira, transitavam imediatamente para a minha galeria secreta desta e outras paixões cinéfilas. Escondia-as ciosamente numa caixinha de folha, daquelas que tinham contido exasperantes bombons de Inglaterra, no fundo do vestuário, por baixo das roupas raramente usadas.

Quando sabia todos a dormir profundamente lá pela casa da Rua das Hortas, visitava demoradamente aquele meu segredo, e imaginava-me a contracenar com o Stewart, ele a esmurrar uns bandidos que me haviam raptado porque seria filha de um magnata, e de quem esperariam um resgate superior a uma fortuna.

A luta levava tempo demais, e só após muitos socos sonoros, sobrolhos abertos e mobília rachada, a cambalear e com uma madeixa de cabelo tombada sobre a testa, o herói me vinha tomar nos braços protetores.

Mais tarde, apesar de haver pelo meio uma loira atiradiça e muito irritante, se as coisas corressem bem poderia ser que acontecesse um inesquecível casamento. Coisas de miúda, porque desde que conheci o meu saudoso Alcobias, tirando um namorico sem consequência com uma rapazola que na altura andava pelo exército e conheci na festa de aniversário do meu primo Januário, e do qual já nem me lembro do nome, não tive olhos para outro homem.

Puxei a cadeira de vimes para a área do jardim que o sol no momento aquecia mais, ao lado do renque de hortênsias carmim, e sentei-me com o Alcobias III estirado sobre as pantufas para prosseguir mais uma soneca de gato. Tinha-me nascido um formigueiro por dentro, e reconheci que se instalara a excitação de quase todos os anos por esta altura. Ia haver a Feira do Gado, e com quem iria? Ou melhor, quem é que eu conseguiria convencer a levar-me à Feira do Gado?

Era já eu mãe do Edmundo, da Dalila, do Vicente e da Marieta, quando fomos pela primeira vez à Feira do Gado, pelos idos 1957, que esta memória ainda me ajuda. Aquela exposição tivera início um ano antes, e apenas dizia respeito a gado bovino. Só a partir de 1962 passaram também a ser exibidas cabras e ovelhas.

Por essa altura já tinha nascido a minha filha mais nova, a Carmo e, mesmo bebé, logo foi metida naquela peregrinação anual ao Porto Moniz. Mesmo quando ocorreram feiras do gado noutros locais, como em Santana (1962, 1963, 1964, e 1967), São Vicente (1963, 1978 e 1979) e nos Canhas (1963), mantivemo-nos fiéis à do Porto Moniz.

dona quit3Enquanto o "Odsmobile 98 Sedan", que foi o melhor carro que tivemos, na opinião abalizada do meu saudoso Alcobias, conseguiu inventar espaço para acomodar o crescimento das crianças, íamos somente os 7 na aventura.

Quando deixou de ser possível abancar os pequenos com o mínimo conforto, lá consegui arrebanhar para o périplo a minha irmã Julieta. O noivo, o Aníbal, tinha um carrão que lhe haviam mandado da África do Sul, de uma marca que nunca fixei, e ainda não existia, obviamente, descendência.

A desperta tinha de ser bem cediça porque o percurso inevitavelmente longo, do Funchal até às Portas da Vila do Porto Moniz, já a cheirar o Paul da Serra.

 

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As paragens eram muitas, principalmente para lá, dados os frequentes despejos fisiológicos da criançada e a necessidade de dessedentar e desentorpecer merecidamente os corpos de todos os viajantes.

O pior, e que fazia subir desesperantemente o número de encostos à berma da estrada, habitava no sensível aparelho digestivo da Dalila e da Marieta. Enjoavam com as curvas e contra-curvas, e lá ia de supetão para o meio de nenhures algo que as suas barriguitas não conseguiam reter. Embora tal efeito emético começasse ainda a Ribeira Brava ficava longe, o que valia seria fazerem-no em simultâneo.

Mas acabava por ser tão bom, após uma navegação tempestuosa e estafante, chegar àquela explosão de verdes e de povo. Visitava-se em primeiro lugar a bicheza e causava repetida admiração os mastodônticos bois reprodutores, sempre mais rotundos que os presentes no ano anterior.

As miúdas gostavam de fazer festinhas no cachaço dos vitelinhos e os rapazes queriam era comer o quanto antes e ir jogar à bola com amigos que invariavelmente acabavam por encontrar.

Se nas primeiras vezes levava-se o farnel de casa, para apreciar à sombra da Laurissilva, quando começaram a proliferar os caramanchões de louro improvisados (sim, as "barracas") para vender carne e bebidas, o Alcobias desaparecia com o filho mais velho durante algum tempo para escolher o melhor lombo para se fazer uma espetada.

O Edmundo era o primeiro a ressurgir para junto da família algo impaciente, espalhada sobre os cobertores onde aconteceria o repasto. Carregava um garrafão onde já estava misturado o vinho seco com a laranjada e, na outra mão, embrulhados em papel almaço, dois apetitosos bolos do caco.

Uns minutos mais tarde, aparecia então ufano o Alcobias, os cubos de carne com flor já enfiados nas vergônteas de loureiro verde. A sua escolha minuciosa de convencido entendido nem sempre corria de feição, o que tornava-se indisfarçável quando as dentaduras, mais umas do que outras, principalmente as dos mais novos, eram arregimentadas para corajosas batalhas com certos nacos de carne.

Depois da farta refeição, os adultos passavam pelas brasas sob a sombra fresca, enquanto os pequenos iam cabritar para o meio da feiteira.

Antes da penitência do regresso ao Funchal, faltava só descobrir um "brinco", dos muitos que iam calcorreando o pó do recinto da Feira. Uma inicial aparente cacofonia orientava o caminho e, quando encontrávamos o primeiro foco de animação, ficávamos por ali a tentar acompanhar com palmas os tocadores de acordeão, cordofones vários e pandeiros, enquanto no meio do bulício um homem e uma mulher cantavam desaustinadamente em desafio rimas brejeiras.

Na volta para a cidade, repetir-se-iam os tormentos do linho, só mais suaves para a pequenada. Adormeciam quase instantaneamente uns sobre os outros, os colares coloridos de rebuçados à volta do pescoço a formarem um arco-íris solidário.

Assim foi durante muitos e bons anos, enquanto o meu saudoso Alcobias viveu. Claro que os filhos, na medida em que foram saindo de casa e fazendo as suas vidas, mais ou menos por ordem decrescente, do mais velho para a mais novinha, aos poucos deixaram de participar na excursão anual à vila nortenha. Antes que o meu marido acamasse de vez, cheguei ainda assim a orientar pela Feira os primeiros netinhos, coitadinhos, que nunca tinham visto uma vaca e pintainhos como de facto eles são.

Sei que entretanto o evento cresceu e, além da pecuária, absorveu a agricultura propriamente dita, tendo por isso, a partir de 1981, passado a chamar-se "Feira Agropecuária do Porto Moniz".

Mas aqui para a Quitéria Maria não me tirem o título de antanho. A ela voltei já este século, numa tentativa de excursão que o Sr. Manuel, o taxista, resolveu organizar. O autocarro estava a cair aos bocados e parou pelo caminho mais de meia dúzia de vezes. Nem se pôde obter vantagem da velocidade alcançada com as vias rápidas e túneis compridíssimos.

Depois a Hermengarda alinhou e só lhe aconteceram desgraças. As pernas grossas como troncos de eucalipto de boa idade, sulcadas por arrepiantes varizes, somente lhe permitiram arrastar o volume por uma dezena de metros no acidentado dos terrenos. Ficou estacionada numa banqueta improvisada enquanto o resto da comitiva embrenhou-se na festa. Estando um solito ameno, começou a "dar bodiões" e acabou por cair de borco, abolachando o rosto redondo contra o solo poeirento. Segundo os rapazes da Cruz Vermelha tinha fraturado o nariz e lá teve de ser recambiada de ambulância para o Hospital. Mesmo assim, chegou primeiro a casa do que eu.

O ano passado consegui convencer o meu bisneto Rodrigo a ir à Feira. Ele bem que tinha dito que era de Moto 4. Mesmo com um género de auscultadores protetores, durante uma semana tive a ensaiar no cocuruto uma orquestra exclusivamente de bombos. Dos rins nem se fala. A vantagem foi que, com aquela maquineta, ficámos mesmo perto do coração do certame, na zona mais chã.

Então voltei ao meu dilema. Com quem iria este ano à Feira do Gado? Ou melhor, quem é que eu conseguiria comover a levar-me à Feira do Gado?

Subitamente, veio-me à ideia outro bisneto, ou não tivesse a Quitéria Maria a módica quantia de 15. O Pedrinho, nem mais! A concluir o curso de Filosofia, já estava de férias na Madeira e tem um daqueles carros que parece um ovo distorcido.

Ainda no Natal passado tivemos uma conversa interessante, na qual ele me citou o seguinte provérbio: «Quando morre um velho arde uma biblioteca». Não que tencione falecer brevemente, que me sinto bem rija. Mas vou dar-lhe com a "biblioteca" antes que seja tarde. Uma lição sobre uma das festas mais tradicionais e originais da Madeira. Sim, sobre a Feira do Gado!

Esperaria pela hora do almoço para ligar-lhe e lançar o desafio. O Alcobias III pareceu pressentir que em breve ficaria com a casa toda por conta dele e com o direito acrescido a rancho melhorado. Lambeu o lábio superior como o faz quando se delicia com o patê de camarão.

Bem, esta crónica já vai longa, mas é que as lembranças da Feira do Gado têm o condão de arrebatar aqui a Quitéria Maria. E sobreveio-me à memória uma canção que um dia por lá ouvi, vim depois a saber daquele grupo rock* de Almada cujo líder, um tal de António Manuel Ribeiro, que chegou a ter problemas com a obsessão de uma fã, vá lá saber-se porquê, e que dizia mais ou menos assim: «Hoje há festa, hoje há feira/No Porto Moniz/Minha terra na Madeira/É Porto Moniz, onde sou feliz».

Queridos leitores, não se esqueçam, é já este fim-de-semana, de 04 a 06 de julho.

* "Voltei a Porto Moniz" é um EP com originais da banda UHF. Editado em 2004 pela AM.RA Discos. Contém dois temas recuperados da coletânea "Eternamente" de 1999. "Voltei a Porto Moniz" foi uma encomenda do Município de Porto Moniz e não está distribuído no circuito comercial.

 

Quitéria Maria
(com Paulo Santos)