1 1 1 1 1

Ui, ui… esta comida está mesmo picante!

pimenta 1 Contextualizando a temática no âmbito da comemoração do “Dia Internacional da Comida Picante”, celebrado no passado dia 16 de janeiro, destaco desde já que, ao que consegui apurar, é desconhecida a origem ou o porquê desta data dedicada a algo tão específico.

Não havendo uma cientificidade credenciada que suporte a relevância deste Dia Internacional, mas, como é sobre comida, ajustei a minha perspetiva e estou solidária com a sua existência. Assim, aceitei como válida, justa e compreensiva a justificação “proporcionar surpresas ao paladar”. Este é um alerta para permitir-nos aventurarmo-nos em experiências gastronómicas mais radicais, já que, em abono da verdade, a variedade é o tempero da vida. Então, e ainda que por mero desafio, fará sentido experienciar pratos com malaguetas e outros ingredientes picantes, dar um sabor extra à comida e descobrir novas combinações deliciosas e, quem sabe, despertar algumas sensações mais atrevidas.

“Ui, ui… esta comida está mesmo picante!” é uma expressão que a maior parte de nós já proferiu e/ou presenciou em alguém. Normalmente, em ambiente de conivência, origina gargalhadas na assistência e uma enorme atrapalhação em quem foi surpreendido pela presença inesperada de uma quantidade significativa de picante no alimento/prato.

O ardor sentido na boca quando em contacto com a comida picante e/ou condimentos picantes é um estímulo provocado por moléculas neles existentes, que interagem quimicamente com as terminações nervosas da cavidade oral. Estes estímulos chegam ao cérebro que, por sua vez, desencadeia uma série de sensações e reações que podem ser de comprazimento em alguns ou de incómodo em graus variáveis noutros. Para além destes, são comuns os movimentos verticais rápidos com a mão à frente da boca (aberta) e aspiração de ar, para aliviar o ardor, bem como pegar no copo mais próximo, na tentativa de apagar as labaredas que lavram na cavidade oral… e se a dose de picante for XL, o pingo no nariz e as lágrimas nos olhos serão inevitáveis. As substâncias responsáveis por estas reações orgânicas são principalmente a piperina e a capsicina, que existem nas pimentas e que lhes conferem a propriedade de picante.

O termo pimenta inclui “frutos” de plantas de famílias diferentes, o que por vezes pode gerar alguma confusão.

A piperina é um alcalóide e é um componente existente nos frutos da Piper nigrum L (entre 5-9%), uma planta da família Piperaceae. Normalmente, distinguem-se três tipos de pimenta: pimenta-verde, obtida quando os frutos ainda estão verdes; pimenta-branca, obtida de frutos maduros (após imersão em água durante vários dias é-lhes removido o pericarpo e a parte mais externa do mesocarpo e posteriormente secos); e pimenta-preta, obtida de frutos já vermelhos e posteriormente secos. São utilizadas como especiarias e o seu poder picante é normalmente suave.

A capsicina é uma das moléculas que está presente em várias espécies de plantas do género Capsicum, que pertence à família das Solanáceas. Curiosamente, esta família inclui plantas tão variadas quanto o tomateiro, a batateira ou a planta que produz o fruto conhecido entre nós como pera-meloa.

Algumas plantas do género Capsicum produzem variedades doces — pimentos ou pimentões — e outras picantes — as pimentas, também chamadas piripiri, gindungo e kaombo ou malaguetas, entre outras.

Além das potencialidades sensoriais das pimentas a nível gastronómico, são-lhes atribuídas várias propriedades farmacológicas e efeitos fisiológicos, muitos dos quais atribuídos aos referidos componentes químicos. Por exemplo, a nível do tubo digestivo estimulam a secreção salivar e os movimentos peristálticos do intestino. Já a nível do ânus, é referido prurido e uma sensação agradável de calor durante a defecação.

Falando de sensações agradáveis, há alguma evidência que, após a ingestão de comida picante e no seguimento da resposta à dor inerente ao ardor na cavidade oral, o cérebro liberta endorfinas em quantidade alinhada com “a força” do picante e, em consequência, com o nível de ardor. Somos então elevados a outro patamar em que a ingestão de comida picante poderá dar uma ajudinha aos mais tímidos e ser facilitadora de desenvolvimentos relacionais com desfechos mais cor-de-rosa. Eis o que, em parte, explica o atributo de afrodisíaco conquistado pela comida picante. À cautela, recomenda-se moderação no picante e muita abundância em fantasia.

 

Avançando para aspetos mais científicos, no campo da saúde, destaca-se o facto de, em algumas civilizações, o picante ter sido usado desde a Antiguidade na medicina popular como remédio natural, nomeadamente para estimular a circulação sanguínea e a sudação e melhorar a digestão.

Após realizar uma pesquisa, no sentido de encontrar sustentação científica credível para confirmar as inúmeras referências às propriedades e efeitos farmacológicos benéficos do picante/comida picante referidos por aqui e por ali, vi-me a braços com uma série de estudos cujos resultados conflituam uns com os outros. Ainda assim, com relativa certeza, alguns associam a ingestão moderada de comida elaborada com ingredientes moderadamente condimentados a efeitos benéficos para a saúde em alguns indivíduos. No entanto, nas mesmas condições, o efeito contrário poderá ocorrer em indivíduos com algumas patologias, com destaque a nível do aparelho digestivo, em especial em situações de agudização, em que qualquer grau de ingestão poderá agravar a situação clínica.

Já no que respeita ao consumo excessivo de picantes, há alguma evidência de efeitos negativos e indesejáveis e nenhuma evidência em relação a efeitos positivos. No entanto, verifica-se que, em populações culturalmente expostas a consumos significativos, existe uma dessensibilização crónica que aumenta a tolerância, que acompanha a magnitude da exposição, como são exemplo as populações Goesa, a Mexicana e a Indiana. Portanto, nestas populações o picante é um traço marcante nos respetivos padrões alimentares.

Numa análise puramente subjetiva, diria que, apesar da diversidade da comida tradicional Portuguesa e das variações entre regiões, o picante, embora presente em muitos pratos, regra geral nunca se impõe de forma dominante aos ingredientes principais. No âmbito regional, é curioso verificar que, na comida tradicional, a pimenta em grão ou moída são amplamente utilizadas na doçaria (bolo de mel de cana, bolo preto, bolo família, etc.), enquanto as pimentas “picantes” são condimento na preparação dos pratos tradicionais (carne de vinho e alhos, bifes de atum, molho de cavalas, etc.). É, contudo, interessante o facto de umas e outras serem utilizadas em quantidades suficientes para “puxarem” pelos sabores dos alimentos/ingredientes, mas sem lhes retirar o protagonismo ou os promoveram à categoria de “picantes”.

Atualmente, fruto da facilidade de migração de espécie botânicas, são cada vez mais as variedades de pimentas disponíveis para compra no mercado regional de sementes.

comida picante escala scoville Para além dos aspetos sensoriais e culinários inerentes aos frutos das pimenteiras, a sua beleza, quando carregadas de frutos, tem conquistado e vencido a curiosidade dos apaixonados pela horticultura. No entanto, na hora de condimentar o prato, a dúvida é sobre o quanto picante pode ser, pois sabemos que algumas têm um sabor quase doce, enquanto apenas o mordiscar algumas pode incendiar as nossas papilas gustativas. E essa é uma pergunta que vamos ter de responder vinda de quem graciosamente presenteamos com uma mão cheia delas. A este propósito, fica a curiosidade o facto de haver uma escala que mede a ardência/poder picante das várias pimentas – a escala Scoville (Scoville Heat Units (SHU)).

O pimentão vermelho, verde ou amarelo, embora não conte na tabela anterior, tem ardência 0, enquanto a Carolina Reaper apresenta a ardência 9.

Em jeito de conclusão, o consumo de alimentos com alguns condimentos picantes enquadra-se no padrão alimentar saudável, se utlizadas com parcimónia e podem mesmo ser muito interessantes, se da sua modesta utilização resultar uma redução no teor de sal das refeições. Os pimentos e outras pimentas pouco picantes podem tornar as refeições mais coloridas e apetecidas e contribuírem para mais variedade e sabor no prato.

À semelhança de todos os alimentos naturais, as pimentas têm propriedades benéficas, mas, de igual forma, o excesso nunca é vantajoso, pelo menos na perspetiva de proteção da saúde.

Dica final: se o grau de ardor exigir beber algo para aliviar, opte pelo leite em vez de água: dará melhor resultado!


Vanda Cristóvão
Nutricionista, CP: 0700N)
Serviço de Saúde da RAM, EPERAM

Comentar

Código de segurança
Atualizar

Este sítio utiliza cookies para facilitar a navegação e obter estatísticas de utilização. Pode consultar a nossa Política de Privacidade aqui.