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Pipocas - do campo para a "boca" do Cinema! (última parte)

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É possível que exista ainda um ou outro antigo domicílio do cinema que, desde o dia em que sentenciado o seu fim, por erro de cálculo em jogo de especuladores ou enigmática resiliência, não tiveram qualquer outra função. Intactos na essência, estacionados numa dobra do tempo.

Um vento daqueles que chuta bolas de ramos ressequidos pelos cenários de alguns westerns nos enrodilhasse precisamente numa «tumbleweed», não para atravessar uma vez mais a mesma ruela deserta, convenientemente sim para dentro de um daqueles lugares de ex-culto ao Cinema, de acordo com os seguintes planos-sequência: sobrevoado o caos do foyer, o transportador vegetal nos colocasse em frente duma porta de duplo pano; entrados a custo, os primeiros metros em total obscuridade, as mãos tivessem de fazer de catana através dos cortinados de teias de aranha caídos da soleira do 1.º balcão; uns metros depois, adquirida uma semipenumbra, dessemo-nos a meio do corredor de uma plateia bem espaçosa, as filas, de um lado e do outro, desdentadas de muitas cadeiras; à frente, uma íris enorme, triste e esbranquiçada, ou um ciclope cego que não tivesse desistido de querer ver; (a câmara a recuar lentamente para trás e, subitamente, inflectindo para a direita) ao fim da primeira fila, divisasse-se o recorte de uma cartola; um corpo vestido de negro repentinamente a levantasse, virada agora para nós. Chegados aqui, Gaston Leroux que nos desculpe, a figura que nos olha por trás de uma viseira é a mesma da capa da edição de 1920 da sua novela «Le Fantôme de l'Opéra» embora, nesta circunstância, um óbvio "Fantasma do Cinema". Este atira-nos algo que guardava na jaqueta. Uma folha de papel amarfanhada. Desdobrada, um trecho de um escrito de Arnaldo Jabor, entre outras artes, produtor, argumentista e realizador de cinema brasileiro: «Ah, o amor, essa raposa. Quem dera o amor não fosse um sentimento, mas uma equação matemática: eu linda + você inteligente = dois apaixonados».

A assombração, exímia em charadas, fora buscar aquele silogismo do autor de "Toda Nudez Será Castigada» (1973) para que, naquela revisitação ao sítio da primitiva peregrinação ao Cinema, mais do que uma mágoa ou saudade, melhor se percebesse o atual paradigma da sua exibição e, nele, o "poder" obtido pelas pipocas. Afinal, tudo, se bem que tortuosamente, passível de ser explicado com formulações matemáticas! Tentemos: indústria do cinema esmagadoramente Hollywood e arredores = filmes essencialmente norte-americanos; cinema negócio milhões = filmes muito público; megacentros comerciais íman de público = salas cinema nas metrópoles consumistas; margem salas cinema ainda assim insuficientes = necessidade receitas suplementares; adoção modelo de sucesso (o yankee) = pipocas.

Em Portugal foi assim, apenas mais tarde do que em muitos outros países europeus (por outras razões que agora não caberão aqui), o século XX já em balanço dos seus sucessos e desastres.

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Noutros recantos mais ou menos longínquos do planeta, se o cinema com ferro EUA manteve-se o prato principal, ou pouco sobraria para fruir, nem sempre as pipocas conseguiram fazer-lhe o acompanhamento. Houvesse nalgumas daquelas paragens encarniçados zeladores gastronómicos que, a cada tentativa invasiva, vociferassem alto e em bom som: «no passaram». Não quer dizer que os seus cinéfilos dispensem snacks quando se saciem em coletivo com um filme, somente têm de ser os deles: na Colômbia, formigas fritas; em Barbados, almondegas de peixe; na Noruega, carne de rena seca; no Japão sardinhas, também secas e, na Rússia, caviar beluga.

Também não se pense que noutros países do regaço da filha de Agenor, a chegada dos grãos de milho vaporosos tenha sido totalmente pacífica. Corria o ano de 2011, quando os jornais deram à estampa que, num cinema de Riga, na pacata Letónia, um homem de 42 anos fora baleado, acabando por morrer, por estar a mastigar ruidosamente pipocas durante uma sessão do «Cisne Negro». A polícia prendeu o atirador de 27 anos, o qual, segundo testemunhos recolhidos, teria advertido a vítima de estar a fazer muito barulho naquela atividade degustativa. Teimosia fatal! Ali, o espírito da ave malévola (que Natalie Portman tornou sombriamente sublime, merecendo por isso o Óscar de Melhor Atriz em 2011) não ajudou decididamente, porque muitas outras cenas de violência terão acontecido em salas de cinema um pouco por todo o lado, apenas sem tal desfecho radical.

Mesmo com as pipocas a fazerem as delícias de muitos e a arruinarem os nervos de alguns (entretanto, no ciberespaço, foram surgindo diversos movimentos contra as ditas, e, mais âncora em terra, programações especiais de "cinema sem pipocas", neste caso, a título de exemplo, as sessões coorganizadas pelo Museu do Som e da Imagem e o Teatro de Vila Real), desde 2010, o pico de anos anteriores, que as salas de cinema portuguesas vêm perdendo público e receitas. Naquele ano tinham atingido 16,6 milhões de espectadores e uma receita bruta de 82 milhões de euros. Em 2011, foram vendidos menos 2 milhões de bilhetes e, no ano seguinte, caíram 12% os espetadores, e 7,5% os proventos. Em 2013, o panorama continuou a degradar-se com menos 3,1 milhões de ingressos vendidos, e 2014 promete manter a tendência descendente. A Madeira não escapou à estatística negativa, embora 2013 tenha sido um ano atípico, dado que metade das salas do seu parque estiveram temporariamente encerradas.

A delapidação de público e lucros só não terá sido mais acentuada, devido ao esforço contínuo dos exibidores em modernizarem-se, entre outras: salas em formato digital com resolução 2k, em 2D, capacidade de exibir conteúdos em 3D e tecnologia IMAX.

 

sombra1Ainda que datado de 2006/2007, grande parte dos motivos que conduziram a este progressivo afastamento das massas dos écrans dos cinemas, encontram-se muito bem explicados no «Anuário de Comunicação» da OBERCOM-Observatório da Comunicação: «a crescente digitalização dos conteúdos e a comunicação em rede alterou os modos de relacionamento do públicos com a sétima arte, por um lado, e, por outro, os modelos de negócio. O canal de distribuição das produções cinematográficas desdobra-se na contemporaneidade numa multiplicidade de possibilidades; das clássicas salas de cinema, passando pela televisão e clubes de aluguer (em retração), até ao mercado da cópia em formatos físicos como DVD, ou, no campo da alta-definição, o HD-DVD e o Blu-Ray, ao video on demand ou streamings gratuitos, aos ficheiros comprimidos partilhados na Internet, entre outros». Mais adiante o Observatório refere que para as quebras que se vão registando «parecem confluir uma multiplicidade de fatores tecidos à escala global. A começar, como já avançado, a fragmentação dos canais de distribuição de cinema com a concorrência direta do mercado de DVD e a crescente oferta on-line de conteúdos cinematográficos, legais e/ou pirateados (nota nossa: à escala global, só nos primeiros 7 meses de 2013, foram apresentados junto da Google pedidos de remoção de mais de 100 milhões de links que, alegadamente, promovem a distribuição de conteúdos piratas). Por outro lado é preciso não esquecer a pressão exercida por subgéneros ou sucedâneos cinematográficos como denota o crescente interesse pelo formato da "série televisiva"». A OBERCOM, mais adiante, reforça que «a prática parece sim ter-se expandido e segmentado por outras mediações da sétima arte e de conteúdos sucedâneos provindos das indústrias criativas audiovisuais. Tal fenómeno vem alterar radicalmente a tradicional cadeia de valor do cinema – alicerçada agora mais numa rede global de vasos comunicantes do que num vetor unidirecional entre produção-distribuição-exibição. Nesta revolução digital e num paradigma de pós-escassez de acesso, ou seja da abundância, o cinema segmenta-se e desdobra-se das salas de cinema às redes peer to peer (P2P), do streamings on-line ao mercado do DVD, etc. Na ótica das preferências mais populares a leitura dos tops de cinema revelou, neste início de século, a hegemonia dos blockbusters familiares, com especial relevo para o género de animação».

Não fossem suficientes os problemas com que as salas de cinema, já de 2.ª ou 3.ª geração face às agora fantasmagóricas com que iniciámos este texto, se vêm confrontando, as pobres das pipocas também não ficaram incólumes a várias campanhas depreciativas.

Em 2013, um grupo de investigadores da Universidade de Colónia, na Alemanha, concluiu que o processo de mastigação das pipocas interfere com a perceção dos anúncios. Segundo estes cientistas, citados pelo «Journal of Consumer Psychology», a publicidade "imprime" nomes de marcas no cérebro que são automaticamente reativadas de cada vez que se depara com esse nome. Ora, segundo a investigação, este "discurso interior" é perturbado pelo ato de mastigar, tornando redundante o efeito da repetição. Para o estudo, 96 pessoas foram convidadas a assistir a um filme no cinema, precedido por vários anúncios. Metade recebeu pipocas, enquanto a outra metade, um pequeno cubo de açúcar, que se dissolvia imediatamente na boca. O teste realizado no termo do filme revelou que a publicidade não tinha tido qualquer efeito nos espectadores que tinham passado a exibição a comer pipocas, enquanto nos outros participantes a quem só fora dado um "adoçar de boca" evidenciaram respostas psicológicas positivas aos produtos anunciados.

Um dilema para os exibidores, dado que ganham com a inserção de anúncios comerciais nas suas sessões, mas que também fazem nada despiciendas receitas com a venda das inebriantes popcorn. Sorte, grande parte dos mesmos anúncios correrem insistentemente pelas televisões e, uma vez que seja, aquele que no cinema não dá descanso às causadoras de "perturbações sensoriais" embasbaque-se para uma ou mais daquelas publicidades. Prejuízo, aparentemente, menor para os anunciantes.

Por outro lado, quatro anos antes, já o circunspeto «New York Times», veio alarmar as hostes referindo que as pipocas, pela quantidade de gordura, sal e calorias que induzem, constituem uma combinação deveras perigosa para os comensais. De acordo com este diário, uma análise aos conteúdos nutritivos das pipocas vendidas nas salas de cinema nos Estados Unidos, realizado pelo centro para a Ciência no Interesse Público, revelou, que um balde grande tem cerca de 1200 calorias, 980 miligramas de sódio e 60 gramas de gordura saturada. Os recipientes mais pequenos, mesmo assim, doseavam 670 calorias, 550 miligramas de sódio e 24 gramas de gordura saturada. Marion Nestle, especialista em nutrição da Universidade de Nova Iorque, citada pela publicação, diz que «o grande problema é a quantidade porque um dos grandes recipientes equivale a três-quartos do consumo calórico diário de um adulto».

Sosseguem os consumidores moderados do milho expandido, a coisa passa-se nos Estados Unidos da América, e sabe-se o que aquela gente exagera no que às guloseimas toca, conseguindo maximizar tudo o que de mal possam fazer. Depois é possível, sem afetar o sabor e a capacidade crocante, reduzir as quantidades (e as qualidades) de sal e de gorduras utilizadas no seu processo pirotécnico.

Contudo, e boa notícia, o maior exibidor de cinema português (quase 200 salas) ter desafiado produtores portugueses, associados da «Agromais», a produzirem milho para as suas pipocas, situação até agora inédita na agricultura portuguesa. A «Nos Lusomundo» com este projeto, tem por objetivo deter «um maior controlo qualitativo e quantitativo da produção, tornando-se uma opção mais sustentada e sustentável, traduzindo-se numa redução de mais de 50% das emissões de carbono no transporte».

sombra4Ao momento a «Agromais» fornece um camião mensal com 25 toneladas de milho para pipocas mas, para satisfazer as cabais necessidades do seu cliente, está a proceder a investimentos para aumentar a sua capacidade fornecedora, quer aumentando a área de cultivo, quer modernizando as atuais instalações de receção, secagem, armazenagem e expedição de milho, que dispõe nos concelhos de Torres Novas (Riachos) e no da Chamusca.

Este escriba confessa, embora nem com todos os filmes, ou seja, com o género em que se encaixe ou com o realizador que esteja do lado de lá da câmara, que umas pipoquitas cremosas (e então portuguesas como se antevê) caiem-lhe bem. Um recipiente pequeno será suficiente e uma mastigação serena evitará incómodos maiores à vizinhança que, licitamente, não suporte ruminações desbragadas. Livre-nos acicatar um avatar do tal letão assassino.

 

Paulo Santos
Direção Regional de Agricultura e Desenvolvimento Rural

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