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Pipocas - do campo para a "boca" do Cinema! (parte XII)

sombra aliceConvém ter sempre por perto uma rede apanha-borboletas ou, em alternativa, um camaroeiro. Não propriamente para capturar mínimos e fugidios seres alados ou nadantes, antes para agarrar palavras ou frases que, há mais ou menos tempo, tenham sido deixadas atracadas aos pauis da memória.

Nem de propósito, feito um primeiro lançamento com este útil aparelho, venha enredar-se à fina malha quadriculada «Alice já não mora aqui»/ «Alice doesn't live here anymore» (um raro caso de tradução quase literal do original), o nome todo do velhinho filme de Martin Scorsese. Sem nada a ver com as qualidades do aparelho de caçada, apenas com as particularidades do local daquela, parte deste título rapidamente se alterasse, e o sujeito gramatical (na situação, também "sujeita") se transfigurasse noutro inquilino, vá-se lá saber porquê, o cinema. Na verdade, a partir de certo dia, os "cinemívoros" foram constatando, de desgosto em desgosto, que o «Cinema já não mora aqui»!

sombra caranguejoNão aconteceu pelos anos 1975, Alice Graham continuaria a viver onde a vimos pela última vez, somemos-lhe pouco mais de uma década, altura em que o cinema, de facto, foi deixando de morar por ali, no centro e nas áreas nobres das cidades. Aos poucos, como um crustáceo eremita, abandonou sem grande remorso a cas(c)a onde fizera tanta gente feliz, mudando-se para condomínios modernaços que se iam eriçando pelas partes novas ou periféricas das urbes, com o epíteto de «shoppings centers», os patrocinados por pessoas mais dadas ao snobismo ou, de «centros comerciais», os promovidos por indivíduos mais terra-a-terra.

São várias as razões que justificarão este fenómeno migratório. Nas principais cidades portuguesas, devido à sua dimensão e desenho, o êxodo encontra maior consenso num palavrão, a "terceirização" a qual, na lufada de uma dinâmica económica que deixará saudades, consistiu na implacável invasão do coração das capitais por empresas de serviços e do comércio de luxo. Argumento também, ter sido irresistível a flauta dos pólos de desenvolvimento mais litorais, com isso crescido grandemente a população e, com ela, a necessidade de espaço maior para a arrumar, havendo que levar-lhe tudo o que pudesse precisar, roupita, calçado, caprichos diversos, incluindo o entretenimento e os bens culturais.

Seria injusto considerar terem sido os novéis conglomerados comerciais, tal como hoje os conhecemos, bazares orientais liofilizados com veleidades vanguardistas, os únicos responsáveis pelo morticínio infligido às salas de cinema, convencione-se, de primeira geração. Houve uma época anterior em que aqueles redutos, porque em zonas menos movimentadas, para atrair clientela fizeram-se envolver precisamente de lojas de negócios vários (juntando uma excelente livraria, um café-restaurante com, para a época, deliciosos combinados,...) como constituirá símbolo, numa Lisboa passada, o «Apolo 70».

A influenza homicida que realmente infetou as até então exclusivas capelinhas do cinema, veio na poeira da segunda vaga dos hunos mercantis, mais poderosos, organizados e, como se preze a um novo-rico, ostentando pelos corredores da sua quinta, farta e cobiçosa quinquilharia brilhante na qual, no meio dela, as caixinhas de ilusões. Estas, na maioria dos casos, já ali chegaram debaixo do braço de senhores engravatados, os distribuidores de filmes que, entretanto, se iam engalfinhando pelo controlo da exibição.

sombra cinema fechado sombra cinema aluga se sombra cinema abandonado

Corriam os anos oitenta do século findo, quando se assistiu àquela debandada de muitos cinemas, unicamente algumas bobinas de um filme por estrear na trouxa, das mansões de sempre, umas mais imponentes e bonitas que outras, para apartamentos arrendados de diferentes tipologias e confortos. Mas, dez anos corridos, irromperam, principalmente nas coroas dos grandes núcleos urbanos, outros colossos mercadores, vorazes dinossauros de betão e vidro (cabeça e membros de um terrível Tiranossauro enfiados no corpo de um simpático Diplodoco) que, além de terem infligido mais um severo massacre nas já desbastadas tropas do comércio tradicional, canibalizaram inexoravelmente os membros mais pequenos da espécie e os primeiros a alisarem o pasto. Destes aproveitaram os cinemas, deixando-os pele e osso a definharem lentamente e, na mesma aspiração, esvaziaram os últimos bastiões da cinefilia autónoma.

 

Sofia Cruz, no seu artigo «Centros Comerciais» explica que: «No terceiro momento, que percorre a década de noventa, surgem os designados megaprojetos. Em finais de 1998, operavam em Portugal vinte empreendimentos comerciais, que reuniam aproximadamente 3.250 estabelecimentos.(...) As lojas âncora deixam de ser em exclusivo os hipermercados e passam a ser os espaços de restauração e salas de cinema. Nesta fase, é possível destacar dois tipos de centros comerciais, considerando a sua arquitetura, layout e mix comercial. O primeiro agrega os que correspondem mais a uma cópia do tradicional centro comercial norte-americano, com dois a quatro, mega estabelecimentos, concebidos como lojas âncora ligadas por um corredor central, constituído por dois pisos e lojas comerciais diversas, e que tem à disposição um amplo estacionamento com cobertura ou ao ar livre. Localizam-se preferencialmente nas periferias das grandes cidades, em virtude da maior disponibilidade de espaço físico aí existente. O segundo corresponde a um modelo de centro comercial mais elaborado, de dimensões maiores e dotado de uma estrutura funcional mais complexa. O baluarte deste modelo é o Centro Comercial Colombo, que pela sua gigantesca dimensão de 119.745 m2 de área bruta locável chegou a ser apontado como a nova "baixa de Lisboa". Em termos de entidades promotoras, destaca-se o papel dos grandes grupos económicos nacionais e estrangeiros que consolidam os seus investimentos na indústria dos centros comerciais».

sombra navio azulPela nossa ilha, na primeira moléstia, feneceram o «Cinema João Jardim» (1986) e o «Cine Parque» (1988). Embora o mercado da exibição cinematográfica já fosse dominado pelo oligopólio da distribuição nacional, nos anos seguintes a página de necrologia foi acrescentando mais óbitos: além do fecho do «Cine Santa Maria», o «Navio Azul», as «Galerias Dom João», e o «Marina Shopping» deixaram de exibir filmes. Porém, felizmente, nunca os madeirenses deixaram de ter oportunidade de desfrutar cinema em casa minimamente adequada. Em 2001 abrem 7 salas no «Madeira Shopping» (antes «Castello Lopes», depois «Socorama» e agora Grupo Orient Cinemas), 2 no «Camacha Shopping», entretanto encerradas, e, em 2005, outras 6 no «Fórum Madeira» (inicialmente «Lusomundo», atualmente «Nos»).

sombra madeira shopDe 2000 para cá, venceu (com o caráter precário que tal juízo não deixará de ter, pelo que adiante se referirá) outro tipo de lugar para haurir cinema, obrigatoriamente dentro de uma cidadela comercial, os pirilampos da gula, da luxúria e da inveja, para que não se citem os restantes pecados capitais, a atazanarem a paz de espírito que um filme deverá merecer, embora várias vezes ocorra o contrário, e seja o objeto que discorre pelo écran a carecer da benevolente indulgência do espetador.

Não foi só o "onde" ver cinema que se alterou, uns sacos com compras, raras delas antecipadamente programadas, a atrapalhar a liberdade das pernas - imagine-se uma fita carregada de convincente suspense. Mudou também, o "como" apreciá-lo. Além das ferramentas habituais, para a maioria a cabeça e o coração, um outro utensílio, ao princípio aparentemente anódino e voluntário. Uma esponja estilhaçada viciante para se movimentar repetidamente da mão para a boca: a dimensão certa para a pinça dos dedos; uma cor luminescente à penumbra; um tempo de vida adequado à experiência entre a língua e o palato, e um sabor-cereal difícil de não gostar, doces ou alternativamente salgadas. Finalmente, tinham feito a sua gloriosa aparição pelos cinemas portugueses, as donas pipocas. Uma entrada em cena que demorara mais de um século mas, desde aí, atrizes permanentemente nos créditos de tudo o que o projetor desvendasse.

sombra pipocas

Paulo Santos
Direção Regional de Agricultura e Desenvolvimento Rural