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Pipocas - do campo para a "boca" do Cinema! (parte XI)

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Um cordão umbilical liga apenas o tempo necessário duas pessoas só, únicas e inconfundíveis, uma que está e outra que vem. Quebrado, quase sempre permanece, apenas noutro estado da matéria, entre quem esteve numa e outra ponta. Em cada caso, com um vigor e duração próprios. Porém, outros fios há, urdidos por uma aranha atemporal e caprichosa que podem estabelecer conexões, mais ou menos improváveis, entre seres, destinos, objetos, épocas e lugares completamente dissemelhantes.

O que é que terão de relação o Dr. Johannes Georg Faust (1480?-1540?) o qual, desde agora, trataremos por Dr. Fausto, Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) e Friedrich Wilhelm Murnau (1888-1931)? Um médico, alquimista, astrólogo, mago e vidente, o primeiro, uma das referências imortais da literatura mundial, o do meio, e o último, um realizador de cinema? Sim, se pisaram este planeta em épocas diferentes, de partida, em comum, todos terem nascido por terras da circunspeta Alemanha. Os três também tornaram-se lendas nos seus distintos misteres mas, o Dr. Fausto, por mais submerso no passado e, sobre esse, ondular uma cortina mais rarefeita e de dobras repletas de insinuações fantasmagóricas, aquele que atraiu maior carga mítica e fantasiosa, influenciando decididamente a obra do percursor do romantismo literário germânico, e a do cineasta que estudou história da arte e literatura, e apreciava Schopenhauer e Nietzsche.

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Acabada a vida do Fausto carnal, esta não demorou, no imaginário popular, a ressuscitar na do homem que, ainda que genial, para alcançar níveis de conhecimento superior, ou não estivéssemos na transição da Idade Média para a dita Moderna, fez um pacto com um emissário do Inferno, Mefistófeles ("o que não ama a luz") de seu nome, trocando a sua alma por vinte e quatro anos sem envelhecer.

Se cada um dos elementos deste trio, por razões diversas, "vendeu-se" a algo, Fausto mais infetou a vida e arte de Goethe e de Murnau. O poeta, romancista e dramaturgo por ele foi atormentado durante sessenta anos, o tempo para converter em palavras indeléveis o que o crítico literário João Barrento considera como uma inflexão da história tradicional «que a faz ascender ao lugar de "tragédia" do género humano (e com isso lhe retira desde logo a possibilidade de ser uma tragédia de carácter, como mandam as leis do género na sua forma moderna). Em Goethe, Fausto assume um recorte universal, alargam-se imenso as suas potencialidades significativas e ele passa a ter, na consciência coletiva ocidental (metonímica, e talvez abusivamente, tomada por universal), a dimensão simbólica própria dos mitos».

Quanto ao realizador que, quatro anos antes já criara o monstro mais aterrador que ainda hoje habita nas catacumbas do cinema, um assustador Nosferatu com que talvez Bram Stoker sequer sonhara, o contágio foi indireto, via o poema monumental de Goethe, e «Faust - Eine Deutsche Volkssage» (1926) consumiu-lhe seis meses de árdua e engenhosa rodagem. Este filme ainda conterá os mais deslumbrantes e assombrosos jogos de luz e sombra jamais registados e o Mefisto que por lá esvoaça fará adequada companhia à personagem encarnada pelo esquálido ator Max Schreck.

 

O cinema, tal como Fausto, e, à sua maneira, os dois extraordinários autores convocados para este texto, igualmente comercializou a sua alma não a um singular, mas a vários "diabos" com nomes tão diversos como "economia", "progresso", "novos hábitos dos consumidores", "evolução tecnológica", etc.. Em quase similitude somente com o primeiro, porque não satisfazendo uns meros cinco lustros de anos, a quimera de perpetuar-se infinitamente.

Não nos vamos alongar sobre o cinema como arte e indústria, deixando para trás tanta e tanta coisa, os blockbusters, o imax e o digital que não nos assombrem. Porque as pipocas, embora em dados momentos o possa ter parecido, nunca deixaram de ser o nosso mote, reajustemo-nos então aos meios para o seu usufruto e, dentro estes, às salas públicas de cinema (pois, o "home cinema"!).

Na década de 80 do século passado, ir ao cinema não era encafuar-se num sítio qualquer. Não que tal acto exigisse uma indumentária especial e outros prévios preparativos estéticos. No entanto, constituía um momento especial revestido de alguma solenidade e com um q.b. de excitação. O filme era escolhido com grande cuidado num dos vespertinos existentes, após nele se ter lido alguma recensão crítica escrita por alguém de cujo gosto mais ou menos comungássemos: o bilhete mais caro custava, à cotação atual, 12 cêntimos e não se achava nada barato! O local era importante mas não determinante. Basta atentar que era raro um mesmo filme passar em mais do que uma sala, e estas tinham um dono, um senhor empresário igual ao dos outros setores de atividade, apenas só talvez mais dado às coisas da cultura.

Já que há pouco aqui o trouxemos, socorramo-nos de Goethe quando um dia terá escrito: «O que passou, passou, mas o que passou luzindo, resplandecerá para sempre». Não é que tenha deixado uma particular saudade as matinés "chunga" em que se atiravam cigarros e outros projéteis do balcão sobre os desgraçados da plateia, o "gamse" manchava as alcatifas e cerzia a parte de baixo das cadeiras. Falava-se em voz alta e, perante os não raros sobressaltos do filme, durante a projeção, sobretudo das películas mais antigas em reprise, lá alguém vociferava um «oh marreco, olha a fita!», ou um menos simpático «oh cambado, olha a fita!».

sala cinemaBoa memória sim, da altura em que havia quem nos levasse à fila e assento corretos (se já estivesse escuro, munido de um providencial olho-de-boi), um gong bem sonoro anunciava o início e a retoma das sessões, o intervalo não falhava com o cortinado a fechar para avisá-lo, e o foyer, após um cafezito, constituía o local certo para se fazerem comentários sobre o que se estava a ver, e discutirem-se alternativas de desfecho.

Em 1983, no centro de Lisboa existiam mais de 40 cinemas diferentes; em 2013 eram apenas 11. É difícil identificar com a melhor precisão qual foi a primeira vítima, sendo mais do que certo que a mortandade foi iniciada pelo Centro Comercial Amoreiras, em 1985, desde então adquirindo acelerada fúria devastadora.

Na Madeira, em 1978, registe-se a inauguração do «Cine-Casino», como a abertura do «Cine-Deck (Navio Azul)» e do «Cine Santa Maria», ambos pelos anos oitenta. Como sabemos, hoje, com sessões diárias, sobrevivem somente dois baluartes em Centros Comerciais.

sombra4Morreram as salas de cinema que nos tinham acompanhado desde a infância. Contudo, com o advento e triunfo do "cinema-consumo" estendeu-se a passerelle de honra à chegada de sua majestade a Pipoca, qual Luluzinha que finalmente tivesse convencido, um mais maduro e definitivamente apaixonado Bolinha, a guardar no sótão a placa-aviso do seu clube que escarrapachava: «Menina não entra».

 

Paulo Santos
Direção Regional de Agricultura e Desenvolvimento Rural