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Pipocas - do campo para a "boca" do Cinema! (parte X)

sombras dinamitePor um momento, aliemos ao papel de assaltantes de memórias o de capangas de um bando de facínoras, com caras de bandido como aquelas que Joel e Ethan Coen conceberam para os seus em «Indomável», que se preparasse para surripiar o pecúlio guardado no banco de uma qualquer cidadezinha do faroeste. Numa casa totalmente construída em madeira, um cofre em pesadíssimo aço. Sem tempo, que sempre o foi curto no oeste, principalmente para os fora-da-lei, para decifrar segredos, sacar de cilindros de dinamite para esventrar o guardador de fortunas. Não é que os irmãos Coen tenham filmado qualquer cena do género na sua incursão ao Western e o que mais provavelmente resultaria daquele assalto seria o estabelecimento bancário ir pelos ares, e a caixa-forte permanecer, impávida e serena, onde sempre estivera. Dos malfeitores desajeitados, aproveitemos somente uma das "bananas" de TNT por encetar, acendamo-la e, com o catrapum, galguemos uns bons anos até aos de sessenta do século passado.

sombras true gritEmbora de repente o cenário visto de cima o pudesse sugerir, não se veio cair a um circo, antes numa bonita enseada domada em piscina por entre as rochas. Todas as pessoas que por ali pululavam tinham ido ao sol e a banhos. Exceto uma. Uma personagem que se destacava por estar no patamar da mais alta das pranchas do Lido. De estatura mediana, não obstante intenso auto treino atlético, com um peito temporariamente mais soprado ainda, fato-de-banho repuxado quase ao umbigo, ia fazendo, para cá e para lá sobre a plataforma, elaborados exercícios de aquecimento e, por alguns esgares, igualmente de concentração. O homem é que sabia, pois preparava-se há longos minutos para dar início ao seu espetáculo diário e, com alguma sorte, partir algum coração de estrangeira desmiolada, viúva, malcasada ou em outro estado qualquer. Essa classificação não lhe dizia nada, tinha de ser era "camone". Ele o artista e, lá em baixo, o público que lhe interessava, o feminino e, vá lá, uns dois ou três invejosos que, por mais que o observassem, nunca lhe chegariam aos calcanhares. Com os olhares finalmente na antena dos pescoços soerguidos, só ele imaginava um mestre-de-cerimónias a anunciar «senhoras e senhoras, "palhaços" também, agora um número já mais visto, único e exclusivo, só na Madeira...», a voz acompanhada pelo rufar de umas baquetas taquicardíacas sobre a pele de um tambor e... lá vai disto. Uma corrida, balanço com os dois pés e o corpo tisnado de braços abertos todo lançado para o ar. Depois do breve voo, mantendo a pose dos membros e do tronco, como se o combustível tivesse acabado subitamente, o conjunto em queda inexorável em direção ao mar; para um mar de um perfeito azul, como só a Madeira tem. A entrada na água, não viesse uma onda inesperada tornar indisfarçável um sonoro chapão, acontecia-lhe na cabeça como se o tocador do tambor tivesse dado vez ao dos pratos, cabendo-lhe num expressivo e seco bater dos discos metálicos conferir a apoteose àquele "salto de morto". Seguia-se o aplaudir da plateia, um ou outro suposto piropo ou olhar maroto dirigido ao herói, ir para junto de amigalhaços (ou não) analisar a prestação, uma bebidita paga por alguém e, dali a pouco, repetir o show.

sombras lidoA sensação inicial de termos descido sobre um circo, afinal, teve alguma razão de ser. Percebe-se agora mais pelo indivíduo em causa, e menos pelo fabuloso cenário a que a explosão do primeiro parágrafo nos trouxera, ainda que este, visto dos ares em aproximação, tivesse alguma parecença com a moradia tradicional do "maior espetáculo do mundo": a torre das pranchas do Lido o topo da sua tenda piramidal, os solários e a piscina as bancadas circulares para acomodar os espetadores. A figura tinha o nome de Freitas "da Banana", mas era conhecido pelo Funchal mais vivido ou mundano por Pepe da Banana porque, além de eterno aprendiz de "Don Juan" e exímio saltador para águas mais ou menos revoltas e profundas, vivia do negócio do dito fruto. Dizem algumas línguas daquele que não ia "para fora". Apesar de querido, pelas costas era alvo de gozo e escárnio pelos seus tiques, indumentária e ditos.

 

sombras MGM1Hoje, sente-se que um género de persona, porque também ator, que muita falta faz à boa-disposição e alegria de qualquer cidade, sobretudo quando pequena e goste, como tenha vagar, de conversar (e bilhardar) amenamente pelas esplanadas de cafés. E aqui apetece pegar no maravilhoso ensaio de Carlo Cipolla (1922-2000), «As Leis Fundamentais da Estupidez Humana», e citar: «o que é mais difícil de definir e o que nem todos compreendem e apreciam é o cómico. E o humorismo, que consiste na capacidade de perceber, apreciar e exprimir o cómico, é uma qualidade muito rara entre os seres humanos». O historiador de economia italiano mais refere que «o humorismo é sem dúvida a capacidade inteligente e subtil, de revelar e representar o aspeto cómico da realidade», e que «o humorismo deve ser diferenciado da ironia. Quando alguém faz ironia ri-se dos outros. Quando faz humorismo ri-se com os outros». Então o Sr. Pepe da Banana terá sido um verdadeiro humorista. Pese a injusta maledicência, a que não ligaria peva, não só fazia rir e ria-se com os outros como, provavelmente, concebia conscientemente todos os motivos/situações para alimentar a galhofa.

Todo este intróito para justificar chamar agora ao texto e aos seus temas, o Sr. Freitas. Em narrativa que me foi transmitida pelos meus pais, o Pepe da Banana, certo dia, ao passar pela bilheteira de um cinema funchalense e sem se saber se para apenas meter conversa com a senhora atrás do guichet ou satisfazer um genuíno interesse cinéfilo, terá perguntado: «Menina, hoje é estreia ou drama?».

sombras MGM2Na época, as salas de cinema eram grandes e sumptuosas, com um pé-direito que podia fazer vertigens e tinham plateia, balcão (que correspondia aos bilhetes mais caros) e, em alguns casos, mesmo um segundo patamar sobre o anterior. O écran representava uma janela, uma abertura para um breve mundo de sonho e magia, que apenas era desvendada quando se afastava, com propositada lentidão, um imponente cortinado. Por vezes duplo, podendo o exterior conter cozidos ao tecido anúncios a estabelecimentos comerciais da proximidade.

Como ilustração daquela eloquência, o «Cinema João Jardim», inaugurado em 1966 na Rua da Carreira, tinha uma lotação para 1.233 pessoas (556 na plateia, 288 na tribuna e 429 no balcão) e chegou a ser referenciado como uma das melhores salas de Portugal.

Iniciado o cone de luz lançado pelo projetor, se irrompia abaixo um leão de juba majestosa rugindo a espaços com alguma veemência (nada mais que o icónico felino que abria, e abre, todos os filmes produzidos e/ou distribuídos pela Metro Goldwyn Mayer) e estivesse pela plateia o nosso Pepe da Banana, ou algum aluno da sua escola de piadas, não espantaria que, num tom que todos os presentes ouvissem, saísse: «#%&&&*, mas já vi este filme!».

sombras milhoOs leitores que tenham resistido até este capítulo, perguntarão com toda a legitimidade: e então, as pipocas? À Madeira, como ao continente português, ainda estavam muito longe de chegar. Porém, pelo menos por São Jorge, era tradição fazer-se o «milho arrugado». Após a desfolha, tirava-se partido das maçarocas mais tenras, as quais eram colocadas em água quente com sal, até ferver. Os grãos rebentavam em "flores" brancas ao longo do troço da espiga obtendo-se, assim, uma espécie de "espetada de pipocas", que muito agitava a criançada.

*naquele tempo um palavrão, hoje, no máximo, tanto mais que já dicionarizada, uma palavra "menos elegante".

(continua na próxima edição do DICA)

 

Paulo Santos
Direção Regional de Agricultura e Desenvolvimento Rural