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Pipocas - do campo para a "boca" do Cinema! (parte VI)

sombra4Uma vida cheia e venturosa como a do cinema necessariamente teria de conter tantas e tantas histórias, algumas das quais levam a muitas outras e estas, por sua vez, a mais ainda, e assim sucessiva e continuamente. Uma vida inimaginavelmente repleta que, se possível fosse desbobinar o filme de si, a mais ou menos consecutivos metros, de reconhecíveis ou inesperados fotogramas irradiassem fitas adventícias e, de todas elas, no seu estender e ritmo autónomos, novos corpos fílmicos continuassem a irromper sem um fim previsível, ladeando, cruzando ou sobrepondo-se. Seja quem a ouse desenrolar, ainda que julgue que o círculo metálico possa ficar no osso, pelo chão amontoar-se-á sempre uma teia em perpétua fermentação. Uma trama de fios de fina celulóide que, num momento, parece organizada em perfeita geometria e, num instante seguinte, em renovado tumulto.

Para que quem viaje pelo cinema se perca menos no intrincado dédalo de ruelas e veredas que lhe conferem uma geografia instável, seria então recomendável recorrer ao auxílio de uma bússola de magia bem calibrada que ajudasse como regressar à estrada (supostamente) principal. Ao embrenharmo-nos na fascinante aventura do cinema com as pipocas, ou vice-versa, justificar-se-ia assim dispor dum instrumento com aquela habilidade, mesmo contando com a sua fiabilidade incerta. Não se desse adicionalmente o caso de ser um objeto raríssimo em local e propriedade desconhecidos e nem ainda arqueólogos da fibra de Indiana Jones terem conseguido identificá-los. Contudo, quando se tenha a sensação de ter entrado num beco sem saída, ou estar a palmilhar um caminho interminável, nem mais que o cinema para vir em socorro.
sombra7É na mala de ferramentas do cinema, qual estojo do mais completo ilusionista, por baixo das gavetas «movimentos de câmara» e «planos», que se encontra o compartimento «montagem». Neste lugar mais reservado, está arrumada a sua essência, os pós que, quando utilizados por certos mestres, podem transformar uma mera filmagem numa obra de arte. Dali, remexendo cuidadosamente a parafernália disposta em estantes, surripiemos um «flash-back», retornando a seu bordo aos anos setenta do século passado.
Depois do televisor que, entretanto, se ia sofisticando e emagrecendo, ao contrário dos seus destinatários, foi entrando pelas casas e apartamentos dos norte-americanos outro eletrodoméstico que, sem observação atenta, assemelhar-se-ia ao primeiro aparato em alguns aspetos. Um deles estava na carapaça retangular, uma viseira espelhada que debitava também programas mas que, apesar de curtos, exagerariam na hiperespecialização, totalmente à volta da culinária. A tecnologia que lhe estava por trás até já tinha sido descoberta acidentalmente por Percy Spencer, no termo dos anos quarenta, e comprovada nem mais nem menos com o milho "pipoqueiro". O problema é que o aparelho inicialmente comercializado pesava mais de 300 kg e tinha a altura de um jogador mediano de basquetebol, como consumia um baú com bom dinheiro, cerca de 5.000 dólares. Sujeitas todas aquelas excrescências a uma dieta violenta, só 17 anos depois o micro-ondas começou a seduzir o comum dos yankees. Com a sua aterrizagem nas bancadas de muitas cozinhas domésticas, numa aliança que perdura aos dias de hoje, chegara o indefetível melhor aliado das pipocas. Saltando as complicações dos processos anteriores, bastavam uns segundos à luz do tubo de vácuo para estoirarem no seu típico fogo-de-artifício sonoro, e tudo a meia-dúzia de passadas do trono da televisão: quando esgotadas, e bem que evaporavam, saciar o apetite custaria repetir o curto passeio.

 

 
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A título de curiosidade, porque na terra de nascimento a associação perdera atualidade e a ideia resultaria, no mínimo, nada imaginativa, uma empresa alemã, a «Nordmende», quando lançou do lado de cá do oceano o seu micro-ondas, chamou as pipocas para atrizes do respetivo spot publicitário.

Alguns anos mais tarde, após a invasão dos domicílios pelo vídeo, o reinado partilhado com o pequeno-écran sem o mínimo derramamento de sangue, formou-se mesmo um trio perfeito. De facto, tornara-se ainda mais tentador recarregar os baldes das pipocas: com o incansável cozinheiro-robot a produzi-las, onde se acomodassem os outros dois equipamentos, estes deixariam um filme onde estivesse, obedientemente parado!

Controlados os territórios que a televisão supos dominar, o cinema não deu descanso aos seus engenheiros, a cuja equipa juntou inopinados convidados de vestes compridas e chapéus afunilados, mandando-os prosseguir na pesquisa de fórmulas inéditas para atrair público ao seu primordial local de culto: as salas escuras nas grandes avenidas, nas ruas movimentadas, nos "cogumelos" de diversão, nos bairros populosos e noutros lugares exteriores com gente disposta a partilhar experiências. Paralelamente, numa estratégia a prazo, ia prospetando terreno virgem para que se mantivesse a visionar da forma original, metendo-se nos projetos dos mega-centros-comerciais que se avizinhavam construir.

Faltava um ano para o início da década de oitenta, quando competiu (e com que competência!) a Francis Ford Coppola, com o magnificente «Apocalypse Now», dar estreia à tecnologia «Dolby Stereo». Com aquele som envolvente, os espetadores ao centro, nunca foi tão impressionante escutar a «Cavalgada das Valquírias» de Richard Wagner. Às notas daquela composição irrepetível, entremeadas pelo rumor de cascos metálicos pisando os ares, os cavalos ali bestas voadoras evoluindo num bailado que seria sublime não fosse simultaneamente terrífico, porque antecipador de dor e morte. Coppola finalmente contrariara a tese de François Truffaut de que o cinema jamais conceberia, pelo que se deixava extasiar por ela, um filme convincentemente antiguerra.

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(continua na próxima edição do DICA)

 

Paulo Santos
Direção Regional de Agricultura e Desenvolvimento Rural

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