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Oh la la! La baguete super! Mais... Portugaise?!

baguete2Se por um qualquer fenómeno, cuja causa pouco importará, o écran do computador à nossa frente desconfigurasse inesperadamente e, após um breve trovejar de pixels catatónicos, nos tivesse metido na plateia dum teatro de sombras chinesas. Na parede alva, os manipuladores invisíveis imediatamente nos impusessem duas silhuetas, à primeira vista iguais. De estatura mediana, o que as distingue é uma ter a área abdominal ainda mais proeminente que a da oposta. Ambas têm o que poderá ser um elmo achatado no alto da cabeça, o mesmo estilete superior reclinado para trás e, talvez a confirmar uma pose algo guerreira, a sair do tronco, pelo menos mais de metade de um objeto de suspeita feição belicista: uma tira retangular nuns bons centímetros, os últimos a adelgaçar para triângulo afilado. Provavelmente uma espada. Dir-se-á que vão iniciar um duelo, daí as armas também justamente idênticas. Espera-se um espadeirar mais ou menos técnico e longo mas o que as duas figuras fazem é aproximarem-se para quase se fundirem. Julgar-se-á então uma refrega corpo-a-corpo de desfecho incerto.

baguete5O écran, tão inusitadamente como no princípio, voltasse a ser atacado de estranha epilepsia e, após vários disparos de eletricidade colorida, o que estava em negativo se convertesse no contrário... Eis-nos então perante dois simpáticos senhores, com cerca de 1,60 m, de evidente gosto pela boa-mesa, a cumprimentarem-se afavelmente. Cada um com a cumeeira da cabeça coberta por boina preta do mesmo modelo e, abaixo dos narizes semelhantemente rosados, bigoditos de cuidado trato, pontas vaidosas reviradas para cima. Entre a axila direita, um, e a esquerda, o mais nutrido, e os respetivos troncos, os dois acomodam um bastão de tons dourados, com mais de meio metro de comprido: a mítica e inconfundível baguete. Desfeita a ilusão das sombras pela nova disrupção informática, constatamos ter-nos sido afinal mostrado, só que na forma de um estafado cliché, o que procuraríamos (ou "googlávamos", como há quem diga) desde o início, e que dizia respeito, ainda que numa fase exploratória, aos franceses e às suas tradições alimentares e, nestas, ao lugar ocupado pelo pão. Lá assomou o "boneco", neste caso em duo, com que habitualmente é "desenhado" o francês "típico", talvez faltando-lhe uma ligação mais óbvia ao (bom) gosto pelo vinho - sim, referiram-se as extremidades nasais com um certo rubor, e, no que será uma indisfarçável manifestação de inveja pelo facto de ninguém lhes conseguir tirar o "negócio" dos perfumes, mas de impossível representação num esquiço, os sinais de uma natureza pouco dada a convívios excessivos com a água. Dos lugares-comuns respigados, aquele que corresponde garantidamente a uma verdade, é a indesmentível paixão dos franceses pela baguete.

baguete4Sem dúvida o pão, muito antes de ter obtido aquela forma de vara, faz parte da genética do povo francês, não constituindo incidente ter estado indissociavelmente ligado a momentos decisivos da sua História, como a Revolução Francesa quando, pelo ano de 1789, a colheita de cereais foi dramaticamente baixa e o preço do então alimento base da esmagadora maioria da população superou o nível da cólera. Maria Antonieta teria conservado por mais algum tempo os seus belos caracóis, não fosse ter proferido o dichote, esclareça-se apócrifo, «não têm pão, comam brioches». Àquela época ficou também associada a decisão da Convenção de 15 de novembro de 1793, conhecida por «pão da igualdade», a qual estipulou terem todos os franceses o direito a usufruir do mesmo tipo de pão, independentemente da classe social.

Se por evolução natural dos tempos e da composição da dieta alimentar, entre o século XVIII e o presente, os gauleses em vez de 1000, passaram a consumir 150 gramas diárias de pão, este produto não deixou de manter uma grande importância no seu quotidiano e, correspondentemente, na economia do país. De acordo com a sua poderosa confederação de padeiros e pasteleiros, e adiante perceber-se-á melhor porquê, existem em França mais de 33.000 estabelecimentos dedicados ao fabrico de pão, ocupando cerca de 160.000 pessoas, e gerando um volume de negócios anual superior a 7 mil milhões de euros. Outro dado muito interessante a reter é que 65 % dos 10 milhões de clientes fiéis que todos os dias se abastecem de pão, fazem-no em padarias artesanais.

 

baguete3Resquício dos ímpetos revolucionários, permanece a regra do pão nunca poder faltar nenhum dia do ano. Pelo menos no que respeita às 1.200 padarias de Paris, nos meses de julho e agosto, só metade delas podem encerrar para férias, o que obriga invariavelmente a um complexo e polémico jogo de rotatividade. Por outro lado, a atividade continua a reger-se por um forte espírito corporativo. Na década de cinquenta do século passado, a principal organização do setor reagiu contra insidiosa campanha que propagou que o pão tradicional contribuiria para a crescente obesidade dos franceses: reduziram o "peso" do miolo na contrapartida de um maior balanço de côdea e ainda mais popularizaram a há muito indispensável baguete. Dez anos mais tarde, resistiram com inteligência à tentativa de golpada da indústria das farinhas, que planeara construir uma gigantesca padaria para servir Paris, eliminando paulatinamente as pequenas unidades de bairro: face à chantagem de terem de comprar quantidades mínimas de cereal a preços exorbitantes, foram ao mundo rural recuperar as então agonizantes moagens tradicionais. Mas outras vitórias sucederam-se nos anos seguintes, e em clara resposta ao avanço crescente para todas as áreas do agroalimentar da grande distribuição, através das suas tentaculares redes de hipermercados. Em 1993, o lóbi da panificação artesanal, municia a aprovação do desde então tutelar «Decreto do Pão». Este diploma, além do «pão de casa» («pain maison»), veio definir o «pão de tradição de França», «pão tradicional francês» ou «pão tradicional de França»: o produto obtido, sem qualquer utilização de aditivos e de ingredientes refrigerados ou congelados (salvo a levedura, como se veio a esclarecer mais tarde), exclusivamente da cozedura de uma massa de farinhas panificáveis de trigo, levedura ou fermento, água potável e sal. Tal não foi considerado suficiente e, em 1998, o Senado fixou a noção de «padeiro artesanal» e, consequentemente, de «padaria artesanal»: o profissional que assegura, com as matérias-primas autorizadas, integralmente todas as operações de fabrico do pão, desde a amassadura à cozedura e, no mesmo local da venda, ao consumidor-final. Esta lei mais veio reforçar o caráter de frescura comprovada de ingredientes e produtos, ou seja, de tudo ter que ser "feito na hora".

Para que não nos dispersemos mais, "abocanhemos" a sério o que nos trouxe a este texto, a baguete propriamente dita. Este pão de peculiar formato, dado o seu atual estatuto a roçar o quase extraordinário, ou não o comprovasse o facto dos franceses, ao ano, "devorarem-no" ao ritmo de 320 unidades por segundo, inevitavelmente carrega várias "estórias" quanto à sua origem. Nas menos verosímeis, incluem-se duas: os padeiros de Napoleão III terão concebido um pão que pudesse ser mais facilmente transportado pelos soldados nas suas longas caminhadas, como se fosse uma "baioneta" comestível, preso ao longo da perna; aquando da construção do metro de Paris, o engenheiro Fulgence Bienvenue, para minimizar os muitas vezes sangrentos conflitos entre os trabalhadores de várias proveniências, terá providenciado que fosse criado um pão que não necessitasse de um instrumento cortante para ser partido.

Mais consensual é a versão de que a génese da baguete deveu-se a um conterrâneo de Maria Antonieta, um oficial austríaco de nome August Zang, o qual, em 1839, instalou-se em Paris, e ali decidiu abrir a sua própria padaria. A breve permanência na Cidade Luz, já que pouco tempo depois voltou ao seu país para tornar-se um magnata da imprensa, foi suficiente para que os produtos que introduziu obtivessem um enorme sucesso. Do pão vienense os franceses aproveitaram o formato alongado e alguma da técnica, nomeadamente o uso da levedura de cerveja. Contudo, só por 1920, face a uma determinação que proibia os padeiros de trabalharem antes das 4 horas da manhã, obrigando a que o pão tivesse um menor tempo de fermentação e cozedura, terá sido impulsionado o surgimento da baguete moderna. O leite utilizado na receita austríaca foi retirado, o miolo aligeirado e a côdea tornada mais crocante.

Porém, como atrás se teve a oportunidade de antever, só a partir dos anos oitenta do século XX, a baguete assumiu definitivamente o estatuto de uma verdadeira instituição nacional para os franceses, sobretudo os parisienses. Entre várias outras elegias, o produto é alvo de inúmeros concursos que dinamizam o seu consumo, e apuram a sua qualidade. A título de exemplo, no XIV bairro de Paris, é realizado há vinte anos o Grand Prix de la Baguete de Tradition Française. As baguetes têm de ter entre 55 e 65 centímetros de comprimento e pesar entre 250 e 300 gramas, como não podem conter mais de 18 gramas de sal por quilo de farinha. O júri, em prova cega, entre outros atributos, avalia o aspeto, a cozedura, o aroma, o gosto e as características do miolo. E este ano, tal como já acontecera em 1998, a vencedora foi a padaria artesanal de um português, a «Aux Délices du Palais» (que só a título de curiosidade fatura 1 milhão de euros por ano), do senhor António Teixeira, natural de Fafe. A baguete premiada em 2014 foi já confecionada pelo seu filho Anthony, de 24 anos. Além do prémio monetário, e do valor, imaginamos incalculável, correspondente ao acrescido número de compradores, o vencedor é indigitado, nada mais, nada menos, do que fornecedor oficial e exclusivo do Palácio do Eliseu. Assim, somente para a presidência da república francesa, todos os dias "marcham" de 20 a 30 baguetes, com "alma", ou porção importante dela, inegavelmente portuguesa. Oh la la!

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Paulo Santos
Direção Regional de Agricultura e Desenvolvimento Rural