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A (des)graça dos alimentos (parte I)

anzol com fruta Suponha-se o vegetal mais saudável, probo e imaculado passível de obter à luz do conhecimento atual: o agricultor do melhor campeonato, ou seja, diplomado com louvor e distinção em agricultura biológica; o produto, durante todo o ciclo cultural no terreno, sujeito a controlo de qualidade picuinhas por entidades independentes e, após a colheita, obrigado adicionalmente a intensa bateria de ensaios laboratoriais dos mais coscuvilheiros existentes – a vida do micróbio até hoje identificado como mais ínfimo impiedosamente devassada, para não falar do esmiuçamento ao nanograma do "pedigree" físico-químico. Aprovado com todas as certificações de excelência, o dito hortícola consagrado voasse imediatamente para a mesa da pessoa mais hipocondríaca possível de encontrar à face da Terra. Por hidrófobo a qualquer coisa externa à redoma do controlo pessoal, então vinda do campo, não custará admitir igualmente ser ente que dispusesse de uma saúde cuidada. Aparentemente convencido, após a exibição de vários certificados de garantia autenticados por "isos" e outros distintivos de desenho austero, de toda a bondade e segurança do que lhe estava a ser apresentado, ainda assim, pela via das dúvidas, exigisse a oferta fosse aspergida com umas gotículas, passe a publicidade, de «angelini».

Luvas postas, talheres descartáveis em riste, o nosso comensal-cobaia, após uma última minuciosa inspeção visual à massa verde a palpitar no prato, finalmente se decidisse à degustação. Cortada, com toda a delicadeza, uma fina fatia do alimento, o garfo que a levaria à boca ficasse, porém, subitamente suspenso a poucos centímetros dos lábios. O indivíduo, então, pedisse com alguma rudeza que os presentes se retirassem da sala de provas. Não justificasse porquê, mas todos com a sensação pudesse a sua respiração contaminar a comida, vá lá saber-se com que perniciosa patologia.

Continuando a suposição, passadas quase três horas após o último parágrafo, nada saísse da sala, nem um som, nem a pessoa que lá ficara sozinha. Tanto tempo para despachar uma salada de alface, apenas de hipotético tempero com sal (flor do mesmo) e azeite (virgem extra e premiado) então colocados sobre a mesa a gosto e à vontade do comedor? Epifania inesperada e o prato de delicada porcelana incluído na ementa? Sesta de deleite e arrebatamento? Possível ataque anafilático? Alguém, por fim, decidisse-se a abrir a porta para saber o que podia ter acontecido e...

Convocado à pressa, chega então um homenzinho, com pouco mais de 1,60 m, encafuado num sobretudo uns bons números acima de quem vestia. Quando tira o chapéu, a cabeça é um ovo perfeito, mas o bigodinho bem cofiado e revirado para cima nas pontas confere-lhe um ar distinto e arguto. Pois é, nem mais nem menos, Hercule Poirot ali. Sem demora, aproxima-se do corpo de bruços sobre a toalha alvíssima da mesa, o prato com a alface oculto debaixo do peito. Em silêncio, pega na mão direita da vítima, que ainda agarrava um garfo de plástico translúcido. Segundos depois vira-se para a assistência e profere: «Pois é, mes amis, nem será preciso por a trabalhar as células cinzentas, estamos perante um caso típico de envenenamento por arsénico». Os olhinhos brilhantes parecem fixar-se num ponto qualquer da parede do fundo do salão, mas já fazem uma radiografia impercetível de todas as pessoas à volta, ainda atónitas com a revelação. Depois de pigarrear sonoramente, o belga continua: «Se atentarmos nas unhas deste senhor, salta à vista apresentarem umas linhas brancas, as denominadas listas de Mees... sinal óbvio de que foi o trissulfureto de arsénico, ou sandarach como já era referenciado por Aristóteles, a causa do decesso».

 
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Antes que o detetive personagem de 39 dos romances de Agatha Christie decida inquirir todos os potenciais suspeitos, haverá que dizer-lhe que poderá voltar em paz para a estante dos livros, porque tudo se tratou de um mero exercício, e o nosso comensal-hipocondríaco um ator convidado, com especial talento para fingir de morto. Procurou-se com a encenação demonstrar somente que um qualquer alimento, por mais seguro que seja, poderá transformar-se numa arma letal. Bastará uma intervenção deliberada e maldosa, geralmente humana, ou um fator estranho e inopinado, que a seu tempo abordaremos, para que o que à partida tenha todas as garantias de inocuidade e higidez, se converta num inominável assassino.

Para que nos despeçamos delicadamente de Agatha Christie, refira-se que 54 dos seus policiais têm como arma do crime venenos. No «Pharmaceutical Journal» foi publicada uma lista de todos os tóxicos que a escritora convocou às suas tramas. Os peritos identificaram 83, entre cianetos, barbituratos, estricnina, digitalis e diversos alcaloides. A autora possuía um grande conhecimento sobre a área pois, durante a 1ª Guerra Mundial, trabalhou num dispensário da Cruz Vermelha, e no conflito mundial foi voluntária no hospital University College. Aliás, Agatha chegou a afirmar que «Dêem-me um frasco de veneno e eu arquitetarei o crime perfeito».

Como os peixes, muitos foram aqueles que feneceram pelo que levaram, ou lhes conduziram, à cavidade bucal. O que para lá foi, a maior parte das vezes, sem culpa nenhuma. Necessidade vital e irreprimível, a bulimia e a anorexia casos clínicos, o comer (o que e como se come), sempre constituiu uma vaporosa fronteira entre a saúde e a doença, entre o bem-estar e o sofrimento.

Nos próximos artigos desta série, continuaremos a discorrer sobre o assunto.

 

Paulo Santos
Direção Regional de Agricultura e Desenvolvimento Rural