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O transporte rodoviário de produtos vegetais – parte IV

transporte2Foi só a demora, que nunca é igual, de "ligar" o portátil, intervalo de tempo este certamente mais dependente do estado de espírito do momento do que da tecnologia, pois esta ainda não "sentirá" (a este propósito, e num cenário que o contrariará em absoluto, o leitor que não perca o filme "Her" de Spike Jonze que, em português, recebeu o título de "Uma história de amor", o qual, aliás, foi laureado com o óscar deste ano para melhor argumento original).

Seguidamente parear os indispensáveis "ctrl" e "alt", validar o gesto com um decisivo "enter", aguardar por uns rápidos soluços de luz, até que se defina o já numeroso exército de ícones que cada dia que passa ocupa maior área do azul do écran, invadindo cada vez mais também a pose do meu fiel gato Félix, que passa a mostrar o ar de quem não estará a gostar do abuso. Apenas mais uns quantos segundos para selecionar a pasta "DICA", abrir o ficheiro com o nome deste artigo, e zás, logo ganhou forma o nosso homem cortador (e transportador) de bananas que nos vem acompanhado desde o início da exposição deste tema. Desta vez ficou sentado na barra de ferramentas inferior do plasma, só as pernas para o exterior e, como seria de antecipar, antes que me fosse possível sequer escrever uma letra, logo começou a falar, a voz atrás duma baforada de fumo a sair da tal ponta de cigarro eternamente residente na boca: «olhe senhor, não foi por não haver estradas e automóveis até ao princípio do século passado que a cidade não deixou de ter comerzinho. Nos tempos antes, e ainda durante muito tempo depois, o transporte de mercadorias fazia-se por mar, através dos "carreireiros"».

Tossicou um pouco, e após readquirir o fluxo verbal, prosseguiu: «Claro que foi a orografia, só quem sabe, extremamente difícil da nossa terra, que fez com que as vilas e povoações se criassem e desenvolvessem junto à costa... ainda sei de cor onde e quando foram construídos os cais deste comércio de cabotagem... Santa Cruz (1845), Ponta do Sol (1848), Ilhéu de Fora (1870), Machico e Lazareto (1874), Câmara de Lobos (1876), Faial (1903), Ribeira Brava e Porto Novo (1904), Abra (1905), Campanário (1908), Ponta da Oliveira e Caniçal (1909), São Jorge (1910), Porto Moniz e Seixal (1916)...».

Fez uma pausa para humedecer os lábios e tirar uma grande fumaça da borra do cigarro...aparentemente esquecera-se de continuar a desfiar o rosário de portos comerciais que foram sendo construídos na Madeira, mas atirou «Tá a ver senhor, muita bananinha foi transportada por mar... e depois de descarregada no calhau era outra aventura!». Sem se virar, foi ao bolso das calças e de uma carteira puída, tirou uma fotografia a preto e branco, meio amachucada. «Veja senhor, o meu pai quando era moço como eu, a transportar banana de corça, os cachos iam abafados em palha das bananeiras».

Olhei com a devida deferência para a fotografia muito antiga que me estendeu, mas tive de dizer-lhe que, com pena minha, continuaria a ouvir as suas histórias numa próxima ocasião, pois tinha de terminar esta série de artigos sobre o transporte rodoviário de produtos vegetais.

transporte1Já no que se refere ao transporte do produto processado para o mercado, o Código de Boas Práticas da UNIPROFRUTAL, estabelece como características desejáveis dos veículos para a expedição da fruta, o seguinte: «a caixa de transporte não comunica com a cabina do condutor; as paredes interiores, pavimento e teto devem ser de materiais lisos, resistentes à corrosão, impermeáveis, imputrescíveis e fáceis de higienizar; o chão (piso) da caixa deve ser estanque para evitar a saída de qualquer líquido para o exterior; os produtos devem estar colocados sobre paletes de material resistente de forma a permitir a circulação de ar e evitar o contacto com as escorrências ou detritos que se possam acumular no pavimento; sempre que necessário devem dispor de equipamento de frio, de modo a manter os produtos a temperaturas adequadas à sua conservação; os veículos devem manter-se em bom estado de conservação. No momento da carga do veículo os trabalhadores verificam o pedido e o destino do mesmo e inspecionam o estado higiénico do transporte comprovando que: está limpo, e não existem restos de produtos ou resíduos que possam alterar a fruta; a carga fica colocada, ligada e sem risco de virar ou deslocar-se; o veículo não balança quando carregado; no caso de veículo refrigerado, a sensação de frio é boa e o equipamento de frio funciona corretamente». Depreende-se do exposto que, no mínimo, as viaturas deverão dispor de caixa isotérmica.

Prosseguindo na extensão da cadeia comercial da categoria de produtos em causa, o setor da distribuição também dispõe de orientações quanto ao transporte dos alimentos, como é o caso da Associação Portuguesa de Empresas Distribuição (APED), no seu Código de Boas Práticas de Distribuição Alimentar. Neste, e quanto ao transporte dos alimentos, é estabelecido que: «o veículo de transporte e a disposição dos alimentos no seu interior devem assegurar a manutenção das temperaturas nos intervalos estipulados pela legislação, e que as caixas de transporte (de temperatura controlada) dos veículos devem estar equipadas com um indicador de temperatura ambiente». No que se reporta à entrega/receção dos alimentos, entre outros aspetos, este código salienta que «deverá ser definido e implementado um plano de controlo de temperatura de entrega», bem como, «uma vez rececionados, os alimentos devem ser imediatamente encaminhados para local de armazenagem ou exposição à venda, o qual deverá estar a temperatura apropriada».

Igualmente numa maior aproximação ao consumo, é importante considerar-se o Código de Boas Práticas para o Transporte de Alimentos, de 2007, da então Associação da Restauração e Similares de Portugal (ARESP) e agora Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP), o qual, depois de admitir que neste setor o transporte é normalmente de pequenas distâncias, fazendo-se, maioritariamente, recorrendo a veículos rodoviários, próprios ou alugados mas, ainda assim, desde logo assume que aqueles «mais concretamente as suas arcas frigoríficas e isotérmicas, devem preencher os seguintes requisitos: assegurar condições de temperatura e humidade adequadas aos alimentos transportados; devem dispor de alarme ou lâmpada indicadora colocada no exterior, para alertar sempre que a porta não fique completamente fechada, e devem permitir a sua abertura pela parte interior; devem ser providas de termómetros, que permitem efetuar o registo das temperaturas do transporte dos alimentos».

Nestes aspetos até reforça que ao selecionar-se um fornecedor, deve dar-se preferência aos que possuam "data logger", ou seja, equipamentos de registo contínuo das temperaturas do transporte.

Mais adiante refere que «o controlo dos equipamentos de transporte é de elevada importância, uma vez que, o seu correto funcionamento evita a deterioração dos alimentos transportados».

Quanto à higiene dos equipamentos e superfícies de transporte as orientações são idênticas às dos outros códigos já referenciados, estabelecendo que «os contentores e as câmaras frigoríficas, em que circulam os alimentos devem ser mantidos limpos e em condições que garantam a segurança dos mesmos, de acordo com um Plano de Higienização e devem: permitir uma limpeza e desinfeção adequadas; prevenir a acumulação de sujidade, o contacto com materiais tóxicos, a queda de partículas nos alimentos e a formação de condensação e de bolores indesejáveis nas superfícies; possibilitar boas práticas de higiene durante todas as operações de transporte». Conquanto refira que podem ser transportados produtos hortícolas frescos, refrigerados ou congelados, quanto aos refrigerados (todo o alimento que sofre um arrefecimento sem que seja atingida a temperatura do seu ponto de congelação, de modo a que a sua temperatura interior seja mantida entre 0ºC e os 7ºC, na generalidade), recomenda que «a temperatura de receção/entrega deve estar compreendida entre os 2 ºC e os 12 ºC, devendo respeitar-se a especificidade da temperatura para cada produto».

Em última análise e, se por absurdo, não fosse dado relevo particular às condições de transporte seguidas por um dado fornecedor, atente-se que, e retomando o Código de Boas Práticas de Distribuição Alimentar da APED, ao cliente comprador, na aplicação das boas práticas na receção na loja/entreposto é recomendado seguir o seguinte: «controlo das condições de entrega do produto (temperatura da viatura - onde aplicável-, estado higiénico e sanitário do interior da viatura, acondicionamento da mercadoria, transporte dos produtos com outros que os possam contaminar; controlo do produto (onde aplicável: avaliação macroscópica, temperatura do produto; aprovação ou rejeição da mercadoria rececionada; devolução ao fornecedor ou destruição da mercadoria rejeitada».

Geralmente, como critérios seguidos pelos compradores de hortofrutícolas na receção de hortofrutícolas frescos, são verificadas as seguintes características, como apresentarem-se: sãos; inteiros; limpos, sem presença de corpos estranhos visíveis; sem parasitas ou sinais de ataques de parasitas; sem humidade anormal; sem odores e/ou sabor estranhos; que devem ser rejeitados os produtos com características alteradas bem como aqueles cuja embalagem não se encontre conforme, nomeadamente: fruta demasiado madura, pisada ou tocada; fruta ou hortícolas contaminados com bolores, larvas ou outros parasitas; produtos hortícolas envelhecidos (folhas velhas, raízes apodrecidas) ou com excesso de humidade e/ou terra.

Em condições ideais, pressupondo boas práticas de colheita e pré-seleção dos hortofrutícolas (qualidade e grau de maturação adequados e uniformes, principalmente), de facto, os defeitos que possam ocorrer depois da viagem da exploração agrícola ou unidade de acondicionamento até aos estádios grossista e retalhista, só poderão ficar a dever-se a uma ou mais deficiências nas condições do transporte e, também, à quebra da cadeia de frio, quando este é introduzido na preparação/armazenamento da oferta para os mercados.

 

tabela transportes

Deve salientar-se que o frio, per si, não é o garante, no circuito de distribuição, da preservação da qualidade de um dado hortofrutícola, podendo ocorrer, por diversas razões e circunstâncias, danos causados pelo mesmo, além dos que possam resultar de quebras da cadeia de frio.

Em resumo, poderá afirmar-se que:

De acordo com a bibliografia de referência, os problemas de comprometimento da qualidade mais frequentes durante o transporte automóvel são os relativos ao deslocamento das cargas e à compressão dos produtos. No entanto, os problemas mais sérios prendem-se com a falta de controlo da temperatura. Os transportes de curta duração também podem depreciar a qualidade das produções. Os danos por vibração são frequentes no transporte no campo, ou entre este e a central de processamento, pois os caminhos rurais são normalmente mais irregulares e as viaturas podem não possuir suspensão adequada para amortecer as vibrações. As perdas de qualidade resultam de danos mecânicos, ausência ou deficiente controlo da temperatura e cargas mistas incompatíveis. O manuseamento descuidado e falta de refrigeração ou elevados tempos de espera em condições não refrigeradas nos cais de descarga podem comprometer os efeitos de boas condições de transporte. 

Os danos mecânicos – cortes, abrasões, pisaduras, deformações – depreciam a aparência dos produtos hortofrutícolas e induzem um conjunto de respostas fisiológicas que aceleram a senescência e provocam descolorações. Os danos mecânicos provocam um aumento da taxa de produção de etileno, geralmente resultam num aumento da taxa de respiração, rutura da compartimentação celular e degradação das membranas, que leva ao acastanhamento dos tecidos. Além disso, rompendo a integridade dos tecidos, favorecem a perda de água e aumentam a suscetibilidade da contaminação microbiana. A prevenção de danos mecânicos deve ser uma preocupação constante na conceção, instalação, operação e manutenção de sistemas de colheita e de preparação para o mercado incluindo, naturalmente, os transportes. Importa por isso ter presente as causas dos danos mecânicos e as formas de os prevenir ou minimizar.

A refrigeração, à temperatura aconselhada para cada produto, tem um papel determinante na qualidade porque: reduz a atividade metabólica, incluindo a respiração, a produção de etileno, as alterações de composição e a velocidade de senescência e de amadurecimento; reduz a atividade microbiana, incluindo o desenvolvimento de doenças nos produtos hortofrutícolas e a proliferação de patogénico humanos; reduz a perda de água; reduz os fenómenos de crescimento que limitam a vida pós-colheita de órgãos de reserva (e.g. abrolhamento de batata, alho e cebola); prolonga a vida pós-colheita de frutas e hortaliças, reduzindo a taxa de depreciação da sua qualidade.

Os veículos e contentores de transporte de produtos alimentares devem ser adequados tendo em conta a natureza dos produtos transportados e as distâncias/tempo dos percursos entre os vários elos da cadeia de distribuição. Os produtos menos perecíveis poderão ser transportados à temperatura ambiente ou em veículos isotérmicos, enquanto outros produtos exigirão condições particulares de frio no seu transporte.

A) Da exploração agrícola a um estabelecimento de preparação da oferta para o mercado (caso dos Centros de Abastecimento Agrícola da Madeira):

A preservação da qualidade dos hortofrutícolas durante o transporte depende de múltiplos fatores, a começar pelas especificidades do(s) produto(s) que esteja(m) em causa, e das suas combinações, sendo importante considerar-se, sobretudo para trânsito de duração superior a 1,5-2 horas não dever transportar-se em simultâneo, vegetais produtores de etileno com produtos que sejam sensíveis a este gás (acelera o amadurecimento e a senescência, aumentando a velocidade de degradação da clorofila e o amolecimento dos hortofrutícolas; aumenta a suscetibilidade dos frutos a fungos, provoca ou agrava o desenvolvimento de acidentes fisiológicos em folhas e frutos, como por exemplo o russet spotting em alface, a acumulação de isocumarinas de sabor amargo em cenoura; provoca abscisão de folhas, flores, frutos. No espargo, aumenta a dureza e a fibrosidade; em batata, estimula o abrolhamento), como produtos que absorvem odores com outros que os emitem.

A adequação de um dado modus operandi de transporte rodoviário, Incluindo o próprio meio, estará diretamente relacionado com o grau de quebras que nele se registem, sendo tanto mais eficaz quanto menores forem as rejeições de produções por defeitos inaceitáveis pelos mercados.

Se estiverem em causa distâncias curtas, geralmente inferiores a 1 hora, (nas situações de transporte prolongado a longas distâncias, este também tem de desempenhar as funções do armazenamento), como as são normalmente na Região Autónoma da Madeira, consideradas a priori condições de boa produção e colheita (produto com o grau de maturação adequado em função dos objetivos de mercado), os produtos menos perecíveis, poderão ser transportados numa viatura de caixa aberta desde que acautelado o seguinte: a caixa ser devidamente higienizada imediatamente antes de cada operação; não transportar outros produtos que não os hortofrutícolas; os vegetais estarem devidamente acondicionados em embalagens adequadas e devidamente limpas; as embalagens estarem bem ligadas umas às outras para que não oscilem ou tombem na viagem, bem como assentem, para uma melhor ventilação, em paletes colocadas sobre o fundo da caixa do veículo; o transporte seja realizado preferencialmente nas horas mais frescas do dia; utilizar uma cobertura leve sobre a mercadoria (ex.: rede de ensombramento) e, em dias de chuva, uma tela/lona plástica impermeável mas que não contacte diretamente com os produtos devendo ser colocada de forma a deixar um espaço suficiente à circulação do ar. O condutor deverá zelar pela realização de uma condução moderada e segura.

B) - Da exploração agrícola/estabelecimento de preparação da oferta para o mercado a armazém de grossista/retalhista:

Os requisitos a adotar quanto ao transporte neste circuito penderão sempre das exigências fixadas pelo cliente grossista ou retalhista. Se, ainda que dependente das características do produto em causa e do processo de preparação comercial a que tenha sido sujeito, ocorre um transporte por intermédio da central preparadora da oferta, este terá de assegurar a colocação no ponto seguinte em idênticas condições de temperatura e humidade às que o mesmo ali tenha permanecido, conservado ou não. A este tipo de entidades deverá exigir-se, pela responsabilidade acrescida que detêm na cadeia de segurança e qualidade das produções, que o transporte de qualquer produção, no mínimo, seja realizado em viatura com caixa isotérmica.

Conquanto o poder discricionário esteja sempre do lado do cliente comprador, não repugna, porque atentas as em geral curtas distâncias a percorrer na Região, e a muito boa qualidade da sua rede viária, que o transporte dos hortofrutícolas seja realizado nas mesmas condições referidas em A. É lícito pressupor-se que, dado o elevado grau de frescura que os produtos ainda detêm, o arrefecimento para uma maior conservação e vida em prateleira, tenha início na própria central de compras, as quais, obrigatoriamente, detêm os sistemas de frio recomendados.

Com a tendência para um aumento das temperaturas pelo incontornável fenómeno do aquecimento global, e a disponibilidade de terrenos para a agricultura estar a confinar-se a pontos cada vez mais distantes dos núcleos populacionais, e consequentemente, dos mercados, sou de opinião dever repensar-se a necessidade dos agricultores deverem dispor dos meios tecnológicos mais adequados à conservação e manutenção da qualidade dos produtos vegetais que obtenham desde a colheita até à colocação no consumo. Considero que é quando um empresário decide investir na atividade agrícola e, pressupondo-se que o seu plano empresarial esteja perfeitamente orientado para as necessidades e exigências dos mercados, que a aquisição de tecnologias e equipamentos para a preservação da qualidade das produções, como sejam as caixas isotérmicas e/ou de temperatura controlável, deva ser devidamente equacionada.

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Paulo Santos
Direção Regional de Agricultura e Desenvolvimento Rural